Publicado originalmente em Migalhas.com.br
Por André Galvão Perez
Todos conhecem os recentes julgamentos do Supremo Tribunal Federal, em matérias diversas, privilegiando a negociação coletiva.
Muitos deles se contrapõem a precedentes históricos do Tribunal Superior do Trabalho, sendo sempre citadas as repercussões dos planos de demissão voluntária e a negociação de horas in itinere, mas o debate é muito mais amplo.
Vale começar por um dos exemplos clássicos.
Como se sabe, os planos de demissão voluntária foram bastante utilizados por montadoras de automóveis na década de 1990 e depois se espraiaram em diversos setores.
Naquele momento as indenizações eram vultosas e, em acordos individuais, se exigia como contrapartida a quitação do empregado aderente ao extinto contrato de trabalho (o empregado participava da iniciativa da terminação do contrato, mas recebia as verbas rescisórias como se a iniciativa fosse unicamente da empresa, além da indenização extraordinária).
No início muitas decisões privilegiaram essa forma de solução de litígios, valorizando o ato volitivo (adesão ao PDV).
Isso inclusive ensejou a censurável prática de desistência da ação (ou arquivamento) quando distribuída a uma Vara em que se sabia do acolhimento da quitação pelo magistrado; problema depois solucionado pelo aperfeiçoamento das regras de prevenção1.
Essa jurisprudência que privilegiava a boa-fé sucumbiu diante dos argumentos de sempre (vg. presunção de fraude, hipossuficiência, irrenunciabilidade)2.
Como corolário da anulação da quitação geral, alguns magistrados passaram a determinar a restituição da indenização em reconvenções das empresas ou a admitir a compensação de créditos (muitas vezes o valor da indenização extraordinária era superior ao crédito obtido na reclamação trabalhista).
Esse ajuste também não foi aceito pelo TST3.
Na prática, os sindicatos sempre estiveram de alguma forma envolvidos na instituição dos Planos de Demissão Voluntária e à época participavam da homologação das rescisões4, mas, diante da jurisprudência refratária, muitas empresas passaram a cautelosamente negociar a inserção das regras em acordos coletivos de trabalho, o que foi aceito por parte da jurisprudência5.
Novamente houve pelo TST recusa da quitação mesmo se prevista em norma coletiva.
Esse é o panorama jurídico, mas a consequência prática foi a drástica diminuição do valor oferecido a título de indenização nos PDVs e o estímulo a reclamações trabalhistas, enraizando ainda mais a presunção de que apenas o Judiciário seria idôneo para a solução de conflitos.
Esse quadro muda com o acórdão do STF da lavra do Min. LUÍS ROBERTO BARROSO no RE nº 590.415/SC, admitindo a quitação geral quando prevista em norma coletiva.
Outros arestos do STF, como dito, também valorizaram a negociação coletiva, reformando decisões da Justiça do Trabalho.
Na prática, os pronunciamentos do Supremo contribuem para maior segurança jurídica e previsibilidade nas relações de trabalho, sobretudo pela valorização da boa-fé e do diálogo.
Vedam exagerada intromissão dos juízes no conteúdo das normas coletivas, agindo como se, após sua celebração e aplicação, possível fosse voltar no tempo, recriar as circunstâncias fáticas, sentar à mesa para reavaliá-las e, desrespeitando a vontade coletiva dos sindicatos e empresas, anular cláusulas.
Estavam sendo sistematicamente invalidadas, anuladas ou simplesmente desprezadas diversas espécies de cláusulas coletivas, como as que reduziam intervalos intrajornada mediante contrapartidas, estabeleciam controles de ponto por exceção, criavam critérios para contratação de aprendizes ou portadores de deficiência, alteravam os dias de descanso semanal remunerado etc.
Muitos desses preconceitos já foram superados por julgamentos mais recentes do TST, especialmente após a Reforma de 2017 (vg. a validade do controle de ponto por exceção), mas persistem divergências que ensejam insegurança jurídica.
Havia, assim, (e ainda há em grande parte) um óbvio desestímulo à negociação, reduzindo a importância do papel constitucionalmente atribuído aos sindicatos (artigos 7º, VI, XIII, XIV, XXVI e 8º da CF).
No STF, além do já referido aresto da lavra do Min. BARROSO, são paradigmáticos o acórdão de relatoria do Ministro Teori Zavascki, provendo o RE no 895.759/PE, e o despacho do Ministro GILMAR MENDES no ARE 1121633.
Este último processo nos transporta para o título da coluna: redundou no tema 1.046 de repercussão geral, o que, concretamente, implicou a suspensão da tramitação de milhares de processos na Justiça do Trabalho.
Eis o tema:
“Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente.”
A despeito dos precedentes mencionados (“jurisprudência dominante”, como admite o v. acórdão que reconheceu a repercussão geral), no dia 18/5/2022 deve ser fixada tese para o Tema 1046, discutindo-se novamente os lindes da negociação coletiva e, especificamente, a possibilidade de sua prevalência diante da lei.
Eis a tese originalmente proposta pelo insigne Relator:
“Os acordos e convenções coletivos devem ser observados, ainda que afastem ou restrinjam direitos trabalhistas, independentemente da explicitação de vantagens compensatórias ao direito flexibilizado na negociação coletiva, resguardados, em qualquer caso, os direitos absolutamente indisponíveis, constitucionalmente assegurados.”
Esse julgamento reavivará a oposição entre o tratamento homogêneo da lei e as nuances que ensejam negociação de condições de trabalho específicas.
É urgente o pronunciamento quanto ao tema.
Como mencionado, milhares de processos foram sobrestados por liminar concedida pelo Min. GILMAR MENDES no ARE 1121.6336, mas muitos juízes se recusaram a fazê-lo, o que ensejou inúmeras reclamações constitucionais.
Há caso em que atuamos divulgado há poucos dias pelo Migalhas7.
Lá se discutia, dentre outras questões, a validade do controle de ponto por exceção previsto em norma coletiva. O Min. ANDRÉ MENDONÇA, em decisão liminar, reconheceu a aparência de afronta ao decidido pelo STF e determinou a suspensão. A notícia parece trivial. No entanto, há um detalhe que não mostra a reportagem: o juiz de primeiro grau aplicou à empresa multa por litigância de má-fé por ter requerido obediência à decisão do Min. GILMAR MENDES.
O desrespeito é mais sutil quando amparado em recortes hermenêuticos.
Como a discussão diz respeito à possibilidade de prevalência do negociado sobre lei ordinária, alguns julgados passaram a afastar a ordem de sobrestamento com o argumento de que basta a matéria estar referida na Constituição para a inaplicabilidade.
Em outro caso em que atuamos (também objeto de notícia no Migalhas8), entendeu o TST inaplicável o sobrestamento na discussão de validade do regime 5X1, pois faz coincidir o descanso com o domingo uma vez a cada sete semanas. A decisão era paradoxal. Afirmava se tratar matéria constitucional (descanso preferencialmente aos domingos, nos termos do artigo 7º, XV, da CF), mas concluía aplicável por analogia lei ordinária voltada ao comércio varejista (artigo 6º da Lei 10.101/00).
A Constituição não traz o sentido do advérbio “preferencialmente”. Tal regulamentação é feita por lei ordinária ou por normativa do MTP. Na reclamação então ajuizada foi concedida liminar favorável à empresa pela Min. CARMEN LÚCIA (Rcl. 44.605), posteriormente confirmada pelo Colegiado.
Outros juízes afastam o sobrestamento invocando a regra do artigo 988, § 5º, II, do CPC, desprezando o fato de que aqui a determinação não decorre da mera repercussão geral, mas de decisão específica com amparo no artigo 1035, § 5º, do CPC. Erro palmar e recorrente.
Tudo está a revelar a importância de pacificação quanto à matéria, o que também terá repercussões na aplicação dos critérios trazidos pelos artigos 611-A e 611-B da CLT.
Como se sabe, antes da Reforma de 2017 houve ensaios de regulamentação dos limites de negociação, como em projeto de alteração do artigo 618 da CLT de 2001. Quando finalmente se aprova lei a respeito, persiste a resistência em sua aplicação.
É de se esperar decisão do Supremo confirmando a ratio dos precedentes acima citados.
Se assim ocorrer, haverá não apenas o reconhecimento da importância atribuída à negociação coletiva pela Constituição e por diversos tratados ratificados pelo país, mas também o respeito às escolhas democraticamente feitas pelo Congresso Nacional.
Em suma, o que está em jogo são facetas da própria democracia.
__________
1 A propósito: PERES, Antonio Galvão. Extinção sem julgamento de mérito. Efeitos da sentença. Breves apontamentos sobre os limites éticos e objetivos para novo ajuizamento. Revista de Direito do Trabalho. n.128. S. Paulo: RT, outubro-dezembro de 2007. p. 11-18.
2 OJ 270 da SBDI I do TST. Programa de Incentivo à Demissão Voluntária. Transação extrajudicial. Parcelas oriundas do extinto contrato de trabalho. Efeitos. A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho ante a adesão do empregado a plano de demissão voluntária implica quitação exclusivamente das parcelas e valores constantes do recibo. (27.09.2002)
3 OJ 356 da SBDI I do TST. Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PDV). Créditos Trabalhistas Reconhecidos em Juízo. Compensação. Impossibilidade. Os créditos tipicamente trabalhistas reconhecidos em juízo não são suscetíveis de compensação com a indenização paga em decorrência de adesão do trabalhador a Programa de Incentivo à Demissão Voluntária (PDV).
4 Eis um julgado da lavra da Desembargadora BEATRIZ DE LIMA PEREIRA: “Vejamos. Os documentos 232/236 do volume apartado noticiam que o trabalhador, com a assistência do Sindicato dos Metalúrgicos, ainda da Representação Interna dos Empregados (documento 232-verso), em 16.10.02, celebrou acordo com a recorrente para pôr fim ao contrato de trabalho, recebendo, por isso, indenização correspondente a R$ 15.186,96 (quinze mil, cento e oitenta e seis reais e noventa e seis centavos), conforme documento 235.
Além disso, o empregado firmou declaração expressa dizendo que “…ante o acordo ora celebrado, ao receber os direitos trabalhistas que lhe serão creditados em sua conta-salário no 10° dia subsequente à data constante na cláusula 1 do presente acordo junto com o valor aventado na cláusula ‘2’, dará a mais plena, total e irrevogável quitação de todo e qualquer direito decorrente da relação empregatícia havida entre as partes para nada mais reclamar, seja a que título for, exonerando e desobrigando a EMPREGADORA…” (documento 232-verso).
Nesse contexto, não obstante a previsão insculpida na Orientação Jurisprudencial n. 270 da SDI-1, cuja aplicação não pode mesmo ser genérica e indistintamente observada, merece acolhida o inconformismo da recorrente.
(…)
Assim sendo, evidente a presença dos elementos indispensáveis à celebração de transação válida. O empregado, mediante o recebimento de indenização especial, abriu mão da continuidade do contrato de trabalho e da postulação de direitos dele decorrentes, e a empresa, para atender suas necessidades de redução de pessoal e evitar a ocorrência de reclamação trabalhista futura sobre direitos decorrentes do contrato de trabalho, efetuou o pagamento de indenização especial, a que não estaria obrigada se a rescisão fosse operada por despedimento imotivado.
Observo que o recorrido não demonstrou a ocorrência de vício de vontade, o que reafirma a plena validade e eficácia da transação operada.
Não é demais lembrar que tal avença recebeu a chancela do órgão representativo da categoria do reclamante, na medida em que a rescisão contratual foi celebrada com a sua assistência, sendo certo que nessa ocasião, quando da outorga da quitação, o empregado teve a oportunidade, se fosse o caso, de registrar a ressalva quanto a eventuais direitos que pretendesse excluir da referida quitação” (TRT 2ª R., Proc. 00153200446502006, Ac. n. 20060596290, Rel. Beatriz de Lima Pereira, j. 10.08.06, DOESP 29.08.06).
5 Aresto da lavra do Desembargador LUÍS CARLOS CÂNDIDO MARTINS SOTERO DA SILVA: “CONTRATO DE TRABALHO. QUITAÇÃO. TRANSAÇÃO. ACORDO EXTRAJUDICIAL. ASSISTÊNCIA DA ENTIDADE SINDICAL. VALIDADE. Impera o reconhecimento da validade da quitação ampla das verbas decorrentes do contrato de trabalho, bem como do próprio contrato, fruto de uma transação, corporificada num acordo extrajudicial assistido pela entidade sindical. Agiganta-se ainda mais a validade dessa quitação, quando os termos do acordo foi originário da assembléia dos trabalhadores, extraordinariamente convocada para deliberar sobre a questão. Assim, por expressa determinação constitucional, o prestígio dado aos acordos coletivos suplanta contrariedade menor individual, porquanto o que deve prevalecer, são os interesses coletivos” (TRT 15ª R., 5ª Turma, RO 015422/1998, Rel. Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva, DOESP 01.12.1999).
6 “O processo de origem trata de reclamação trabalhista que resultou no deferimento do pagamento de horas extras decorrentes de horas in itinere. A questão central foca-se na validade de cláusula de acordo coletivo que, ao tempo que prevê a faculdade de a empresa fornecer o transporte aos empregados, suprime o pagamento do respectivo tempo de percurso. O acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (GO) reformou a sentença de primeiro grau e afirmou, não obstante a previsão no acordo coletivo, que a empresa se encontra em local de difícil acesso e que o horário do transporte público era incompatível com a jornada de trabalho, o que confere ao empregado o direito ao pagamento dos minutos como horas in itinere. Inconformada, a recorrente (Mineração Serra Grande S.A.) interpôs recurso de revista, que teve seu seguimento negado. Ao agravo de instrumento interposto em seguida também foi negado seguimento. Após, foi interposto agravo interno, que teve seu provimento negado e cujo acórdão foi objeto então de embargos à subseção especializada (SBDI1), que foram, por sua vez, indeferidos.
A recorrente interpôs recurso extraordinário, que teve seu seguimento negado, ocasião em que foi interposto agravo (artigo 1042 do Código de Processo Civil), que igualmente teve seu seguimento negado, ao que a recorrente interpôs agravo interno perante o Supremo Tribunal Federal, o que então ensejou a reconsideração da decisão anterior e a respectiva apreciação do recurso extraordinário no Plenário Virtual. Em 3.5.2019, o STF, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada e, no mérito, não reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria, que será submetida a posterior julgamento no Plenário físico (tema 1.046).
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) requer sua admissão no feito na qualidade de amicus curiae (§4º do artigo 1035 do CPC c/c §3º do artigo 323 do Regimento Interno do STF), bem como a suspensão das ações que versam sobre o tema. A intervenção do amicus curiae cabe quando houver “relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia” (art. 138, caput, do CPC/2015). Não resta dúvida acerca da importância da causa, cujo tema (validade de cláusula de acordo coletivo) vai além do interesse das partes, apresentando, pois, repercussão transindividual ou institucional. Ademais, até o reconhecimento da presente repercussão geral, muitas dessas ações tinham sua improcedência determinada pela aplicação dos fundamentos determinantes do paradigma (RE-RG 590.415, Min. Roberto Barroso), que consignou a possibilidade de redução de direitos por meio de negociação coletiva e a inaplicabilidade do princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas ao direito coletivo do trabalho. Uma vez recortada nova temática constitucional (semelhante à anterior) para julgamento, e não aplicado o precedente no Plenário Virtual desta Suprema Corte, existe o justo receio de que as categorias sejam novamente inseridas em uma conjuntura de insegurança jurídica, com o enfraquecimento do instituto das negociações coletivas. Posto isso, admito a Confederação Nacional da Indústria (CNI) como amicus curiae (art. 138, caput, do CPC/2015). Determino, ainda, a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional, nos termos do artigo 1035, §5º, do CPC, uma vez que o plenário virtual do STF reconheceu a repercussão geral do tema.