Publicado originalmente em conjur.com.br
No último mês de março, a 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) autorizou a produção de prova digital de geolocalização para averiguar a jornada de trabalho de uma bancária. O colegiado declarou a nulidade processual e determinou o retorno dos autos à primeira instância para reabertura da instrução.
Especialistas em Direito do Trabalho encaram esse tipo de medida com preocupação, devido à potencial violação da intimidade e da privacidade do empregado.
Caso concreto
A autora da ação alegava que a jornada de trabalho era mais extensa do que a registrada nos documentos oficiais. Já a instituição financeira pedia a extração de dados de geolocalização da trabalhadora.
A 74ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro negou o pedido de produção de prova da ré e invalidou os controles de ponto. Com isso, condenou o banco a pagar horas extras e intervalo intrajornada.
No TRT-1, a desembargadora-relatora, Claudia Maria Sämy Pereira da Silva, considerou que não cabe “o indeferimento da prova para, posteriormente, julgar o feito de forma desfavorável à parte que pretendia produzi-la”.
Segundo a magistrada, “a evolução dos meios digitais e o uso da tecnologia no Poder Judiciário é irrefreável e, mesmo que se calcule que poderá trazer algumas consequências indesejáveis, por certo fará avançar o bom andamento processual, facilitando a dilação probatória e reduzindo a insegurança jurídica, antes gerada por outros meios de prova mais falíveis, como seria a testemunhal”.
Ela ressaltou que o inciso VI do artigo 7º da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) permite o tratamento de dados “para o exercício regular de direitos em processo judicial”. Por isso, entendeu “razoável” a coleta dos dados digitais de geolocalização.
Medida malvista
Ronan Leal Caldeira, head trabalhista no escritório GVM Advogados, lembra que a intimidade e a privacidade são direitos previstos na Constituição e podem ser violadas caso aplicada a geolocalização sem a concordância do trabalhador.
“Referido procedimento deve ser usado com cautela, em situações nas quais se revele a essencialidade da medida, não podendo ser utilizada em qualquer caso, sob pena de subverter-se a distribuição do ônus da prova e violar direitos da personalidade”, ressalta ele.
Já Guilherme Macedo Silva, advogado da área trabalhista do escritório Greco, Canedo e Costa Advogados, também acredita que os dados de geolocalização “podem ser considerados dados pessoais e, portanto, constitucionalmente protegidos” — desde a Emenda Constitucional 115/2022, que incluiu a proteção de dados pessoais como direito fundamental.
A advogada Yuri Nabeshima, head da área trabalhista da banca VBD Advogados, destaca outra previsão constitucional: a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações — que só pode ser quebrado por ordem judicial, “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
“Ou seja, somente seria possível se não houvesse possibilidade de outro meio de prova (como gravação de câmeras no estabelecimento da empregadora, por exemplo), dada a flagrante violação da privacidade do empregado”, argumenta a advogada. Para ela, a quebra do sigilo de geolocalização é uma “medida desproporcional para resolução da questão” e causa “prejuízos injustificados ao próprio titular dos dados pessoais”.
Embora a desembargadora tenha mencionado a possibilidade de tratamento de dados pessoais quando houver necessidade de acesso à Justiça, Nabeshima considera que “tal lógica poderia implicar desvirtuamento do propósito da LGPD, uma vez que a lei estaria sendo utilizada contra o próprio titular dos dados pessoais”.
Polêmica judiciária
Ricardo Calcini, sócio-consultor do Chiode Minicucci Advogados — representante no Brasil do escritório global Littler Mendelson — e colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico, explica que a geolocalização como prova digital ainda é uma tese nova na Justiça do Trabalho: “Ainda não há uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho acerca do assunto, tampouco uma jurisprudência sólida e uniforme acerca do tema”.
Ele também constata as barreiras da intimidade, da privacidade e da LGPD: “É incontroverso que as provas digitais poderão contribuir para a efetividade do processo, contudo, cada caso deve ser analisado cautelosamente, a fim de evitar excessos, violação de princípios e ofensas aos direitos humanos fundamentais”.
Calcini lembra que, no início da crise da Covid-19, a organização internacional não governamental Human Rights Watch identificou risco aos direitos humanos a partir do uso da geolocalização. Além disso, grandes empresas de tecnologia, como Google e Samsung, já admitiram que seus dados de GPS podem estar sujeitos a erros.
Daniela de Fátima Misiti Nishimoto, sócia da área trabalhista do escritório Marzagão Balaró Advogados, afirma que a geolocalização “é muito frágil, por trazer insegurança quanto à sua finalidade”. Segundo ela, “nem sempre os recursos mais tecnológicos e modernos serão capazes de provar a realidade”.
De acordo com a advogada, podem ocorrer imprecisões em algumas situações. Por exemplo, o empregado pode sair para o intervalo intrajornada ou mesmo após o fim do expediente e esquecer o celular em seu local de trabalho. A geolocalização ainda indicaria que ele continuou trabalhando.
José Roberto Dantas Oliva, advogado e juiz do Trabalho aposentado, também vê problemas em situações semelhantes. Segundo ele, o trabalhador pode, eventualmente, esquecer seu celular em casa, mantê-lo desligado ou deixá-lo com algum familiar. “Isso não significará, necessariamente, que naquele dia ou momento ele não terá trabalhado ou estará efetivamente no local em que seu aparelho se encontrava.”
Oliva recorda que, conforme a CLT, a obrigação legal de controle de jornada é do empregador — ao menos para aqueles que têm mais de 20 empregados. “Se quer — e pode! — valer-se de meios tecnológicos para exercer tal fiscalização, deve investir em equipamentos confiáveis, que permitam que isso ocorra sem afronta à intimidade e vida privada do trabalhador”, ressalta ele.
Quando o empregador não exercer o “controle eficaz e idôneo dos horários de trabalho”, a jurisprudência tem uma “fórmula satisfatória para solucionar a questão”: presume a veracidade da jornada informada pelo trabalhador. Para evitar injustiças, tal presunção pode ser afastada pelo empregador em juízo, “apenas invertendo o encargo probatório”.
Na visão de Oliva, “admitir processualmente o acesso ao recurso de geolocalização a partir da utilização de dados oriundos de equipamentos telemáticos do próprio empregado, além de ferir de morte a proteção de preservação da intimidade e vida privada que é constitucionalmente assegurada a todos, traz consequências danosas de ordem jurídica e prática, que extrapolam a própria pessoa do trabalhador”.
Por exemplo, o ônus do empregador é transferido para um terceiro — uma empresa de telecomunicação que levantará os dados de geolocalização. Isso gera custos adicionais, que não são (e nem devem ser) suportados pelas empresas. “Por consequência, haverá elevação do preço do serviço público oferecido, que será transferido para os usuários”, indica Oliva. “Ou seja, o ônus, que originariamente era só do empregador, será compartilhado com a sociedade”.
Com isso, segundo ele, a prestação jurisdicional fica mais cara e os processos trabalhistas também ficam “excessivamente morosos”. O prejuízo, ao final, é “daquele que está buscando justiça e, em última análise, também da sociedade”.
Mesmo assim, o juiz aposentado entende que o uso da geolocalização é possível em algumas situações. Por exemplo, quando o próprio trabalhador fica sem alternativas para produzir provas da sua presença no local de trabalho e se depara com negativa de vínculo empregatício.
“Aí não se cogita sequer de afronta à intimidade ou vida privada, porquanto o próprio detentor do direito (ou seus sucessores) delas abre mão em prol de um bem maior, sendo possível fazer a ponderação de princípios e regras jurídicas”, assinala. Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (interior de São Paulo) autorizou o uso de geolocalização em um caso do tipo.
Além disso, Oliva ressalta que tal recurso pode ser usado em processos criminais, para averiguar a autoria de um delito. Para ele, nesses casos é “perfeitamente razoável” que a sociedade arque com tais custos, pois se beneficiará diretamente “do desvelo do crime e da identificação e retirada do criminoso do convívio social”.
Clique aqui para ler o acórdão
Processo 0100476-34.2021.5.01.0074