Verdade seja dita: ninguém gosta de ter seus pertences revistados e muito menos se despir para passar por revista íntima. Alvo de polêmicas, o tema segue gerando controvérsias.
De um lado as empresas que alegam o legítimo direito de realizar as revistas, em defesa do direito de propriedade, garantido pelo artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal. Do outro, os trabalhadores reclamam da prática, sob o argumento da invasão da intimidade e privacidade – também protegidos pelo mesmo artigo 5º da Constituição, mas no inciso X.
O grande problema é conciliar o legítimo interesse do empregador em defesa de seu patrimônio com o indispensável respeito à dignidade do trabalhador.
A matéria especial dessa semana é sobre o tema revista íntima, incluída aí a revista a bolsas e sacolas, a lei que proibiu a realização de revista íntima nas funcionárias e a jurisprudência sobre o tema.
“Não há nada e nenhuma norma que autorize o empregador ou seus prepostos a obrigar empregados ao desnudamento para revistas. Não há revista íntima razoável. O ato em si constitui abuso de direito e, diante do regramento constitucional é ilícito”, afirmou o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Alberto Bresciani, em seu voto, ao julgar recurso de um operador da Tess Indústria e Comércio Ltda, vítima de revista íntima.
É prática comum o procedimento de revista pessoal, pelas empresas, nos empregados que têm também os objetos – sacolas, bolsas e outros pertences – revistados. A rotina é tolerável, desde que preservada a dignidade do trabalhador, observando-se sua intimidade e privacidade. E deverá atender alguns requisitos como: a realização somente na saída dos locais de trabalho, por meio de sistema de seleção aleatória e mediante acordo entre o empregador e a representação dos trabalhadores, destaca a procuradora do Ministério Público do Trabalho, Sandra Lia Simón.
Ocorre que várias empresas utilizam métodos de revista considerados invasivos, como as revistas íntimas, nas quais o trabalhador, às vezes, é obrigado a se despir completamente. Rotina atentatória à intimidade, segundo a procuradora. “Ainda que perante pessoas do mesmo sexo, e submeta-se a exame minucioso, detalhado, prolongado ou em presença de outros”, destaca.
A empresa tem o risco do negócio e não pode, para minimizar este risco, atentar contra os direitos individuais de seus empregados. “Cabe a ela, portanto, escolher a melhor forma de zelar pelo seu patrimônio, mas com a estrita observância dos direitos fundamentais, já que seu poder diretivo neles encontra limites”, alerta a procuradora Sandra Lia.
Invasão
Revistas íntimas são aquelas em que os trabalhadores têm o próprio corpo vistoriado, sendo até obrigados a tirar suas roupas ou parte delas para demonstrar que não estão saindo com qualquer bem do empregador. As empresas que mais utilizam esse tipo de revista são as de vestuário, medicamentos, vigilância bancária e transporte de valores, entre outras. Também é comum a revista nas indústrias de eletrodomésticos e de componentes eletrônicos, nas joalherias e no trabalho doméstico.
Há quem defenda a ideia de que a revista íntima deve ser o último recurso utilizado pelo empregador, diante da tecnologia disponível para controle de bens, como etiquetas magnéticas em livros, roupas e remédios, controle de entrada e saída de pessoal no estoque e linha de produção.
Existem ainda a filmagem por circuito interno, detector de metais e a vigilância feita por serviço especializado, não havendo, portanto, qualquer justificativa para se exigir do trabalhador que se desnude totalmente. Para Sandra Lia, deveria existir uma lei obrigando as empresas a realizar as revistas por meio eletrônico.
Recentemente, a Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho restabeleceu a sentença que condenou a G Barbosa Comercial Ltda ao pagamento de R$ 30 mil de indenização por dano moral, em decorrência de revista íntima abusiva. A funcionária passava por revista íntima vexatória, realizada por um fiscal masculino, o qual passava as mãos na lateral do seu corpo, costas e cintura.
Para a juíza da 9ª Vara do Trabalho de Salvador (BA), é evidente que a situação constrangedora experimentada pela funcionária tenha provocado um estado de repulsa, angústia e decepção ante a conduta da empresa, caracterizando “verdadeira ofensa ao princípio da confiança e respeito que deve nortear a relação de trabalho”.
O relator do recurso no TST, ministro Ives Gandra Martins Filho, avaliou que a exposição do trabalhador à revista íntima, com contato físico (apalpação de parte do corpo) é abusiva e excede o poder diretivo do empregador, ofendendo a dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade do empregado, implicando em violação ao artigo 5º, V e X da Constituição Federal.
Obrigado a se despir num corredor espelhado
Um outro caso é de um trabalhador contratado pela American Bank Note Company Gráfica e Serviços Ltda, que conseguiu a condenação da empresa ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 23 mil. Diariamente, ele era obrigado a se despir e entrar em um corredor com cerca de um metro de largura e 3,5 de comprimento, todo espelhado. Atrás dos espelhos ficavam os guardas responsáveis pela revista visual do empregado que não sabia sequer quem o estava observando.
Tal procedimento causou-lhe humilhações e, sentindo-se ofendido em sua honra e intimidade, ajuizou ação na Justiça do Trabalho, na qual postulou indenização por danos morais.
Para o juiz de Primeiro Grau que proferiu a sentença, “mais cruel do que a forma como se processa a revista é também o critério utilizado, onde o empregado é inserido em sala envidraçada, desnudado e sem chances de sequer apurar o nível e conferir o profissionalismo com que se desenvolvia a revista, o que torna ainda mais autêntica a crueldade e a justa revolta”.
O magistrado condenou a American a pagar indenização por danos morais. Com a reforma da sentença pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (1ª Região), o empregado recorreu ao TST.
As revistas em que os trabalhadores têm sua intimidade exposta injustificadamente são inadequadas, observou a ministra Maria Cristina Peduzzi, relatora do processo na Terceira Turma. Segundo ela, mesmo a revista sendo uma prerrogativa inserida no âmbito do poder fiscalizatório do empregador, como desdobramento do poder diretivo, como toda prerrogativa encontra certos limites.
Embora a legislação nem sempre os explicite, segundo a ministra, há claros indicativos na Constituição da proibição à prática desenvolvida pela American. Diante disso, Cristina Peduzzi proveu o recurso do empregado e manteve a condenação arbitrada em Primeiro Grau.
Marco regulatório
A procuradora do Ministério Público do Trabalho, Sandra Lia Simón, afirma que a regulamentação da matéria é precária, pois deixa dúvidas quanto ao alcance da expressão “íntima”. Para ela o artigo 373, A, VI, da CLT fere o princípio da igualdade, uma vez que veda a revista íntima apenas para as mulheres. No entanto, a procuradora destaca que o artigo pode ser aplicado em situações de revista a homens, “pois a análise de qualquer lei deve levar em consideração a Constituição Federal e, consequentemente, o referido princípio, insculpido no artigo 5º, caput e inciso I”.
O artigo proibindo às empresas a realização de revista íntima nas funcionárias possibilitou maior repressão à conduta ilegal de algumas empresas que submetiam milhares de empregados à rotina. Segundo o Ministério Público do Trabalho, muitas práticas eram reputadas “naturais”, tanto por patrões como por empregados, sendo que estes, ou não sabiam da possibilidade de questioná-la ou tinham receio de fazê-lo e perder o emprego.
Também a condenação das empresas ao pagamento de indenização por danos morais pela Justiça do Trabalho, foi um instrumento importante para a redução da prática. “Sem sombra de dúvida, serve para inibir a prática em casos futuros. Não há efetiva e concreta mudança de cultura sem que a parte que insiste na prática ilegal sofra uma perda pecuniária”, conclui a procuradora.
Como desdobramento da Lei nº 9.799/99, recentemente, a rede de supermercados Walmart foi condenada a pagar indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 800 mil e também foi proibida de realizar revistas íntimas e físicas em seus empregados, bem como fiscalizar suas bolsas e pertences.
A ação foi movida pelo Ministério Público do Trabalho e seu autor, o procurador do Trabalho Valdir Pereira da Silva, acredita que as revistas extrapolam o poder de fiscalização patronal e ofendem a honra e a imagem do empregado, uma vez que o poder de fiscalização não é um direito absoluto e ilimitado “Não legitimando a violação do direito dos empregados à intimidade e à vida privada”, observou.
Fonte: TST