Por Célio Pereira Oliveira Neto e Ricardo Calcini
Vários são os questionamentos no que se refere à (im)possibilidade de o empregador exigir a vacinação de seus empregados. Para respondê-los, três diferentes fatos devem ser considerados, para que posteriormente seja levado a efeito o uso da melhor hermenêutica, a fim de ditar os passos da interpretação constitucional.
O primeiro fato é o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.586 e 6.587, concluído em 17/12/2020, a respeito de vacinação contra a Covid-19, e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.267.879, em que se discute o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas.[1]
O segundo é a recente aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no dia 17/1, para uso emergencial das vacinas Sinovac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a China, e a da Oxford-AstraZeneca[2], além de outras autorizações que se acredita devam ser concedidas na sequência.
O terceiro é a efetiva disponibilização da vacina para o grupo de empregados, cuja vacinação se exija, na forma do plano nacional e/ou estadual de vacinação.
A melhor hermenêutica constitucional, s.m.j., remete à resolução do caso concreto mediante uso do princípio da proporcionalidade, e seus subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, para efeito de resolução dos diversos conflitos em âmbito constitucional.
Na oportunidade do julgamento mencionado no Plenário do STF, ao tratar da restrição de liberdades individuais, a ministra Rosa Weber asseverou que “diante de uma grave e real ameaça à vida do povo, não há outro caminho a ser trilhado, à luz da Constituição, senão aquele que assegura o emprego dos meios necessários, adequados e proporcionais para a preservação da vida humana”.[3]
Nessa linha, a ministra Carmen Lúcia tratou da prevalência do princípio da solidariedade, constante no art. 3º da CRFB, na medida em que o direito à saúde coletiva se sobrepõe aos direitos individuais, afinal, em seus dizeres, “a Constituição não garante liberdades às pessoas para que elas sejam soberanamente egoístas”.[4]
O Ministro Gilmar Mendes chegou a comparar a recusa de um adulto a determinado tratamento terapêutico com a vacinação, sustentando que no primeiro caso há exercício de liberdade individual, ainda que tal possa implicar na morte, ao passo que na vacinação o interesse é coletivo, priorizando-se a imunização comunitária.
A Carta Magna (CF/88) é una e indivisível, não podendo ser lida às tiras, mas sim combinada, ponderando-se diferentes valores principiológicos em uma situação concreta de vida, tal como na circunstância em tela.
Nessa esteira, orienta-se pelo princípio da unidade da Constituição Federal, que ordena que as normas e, sobretudo os princípios jurídico-políticos, sejam interpretados evitando-se contradições, antinomias e antagonismos[5] – analisados no conjunto do sistema, e não isoladamente.[6]
De igual sorte, o princípio da eficácia integradora promove a manutenção da unidade política, exigindo que a solução dos problemas jurídico-constitucionais seja levada a efeito mantida a integração, a unidade política e social, estando intimamente ligada ao princípio da unidade antes mencionado.
Nota-se que os princípios de interpretação constitucional dialogam e interagem. No curto espaço aqui reservado (sem desprezar os demais princípios), o tema tratado requer menção especial ao princípio da concordância prática. Isso porque este se concretiza por meio da aplicação do princípio da proporcionalidade, cuja aplicação aqui se sustenta, tal como o fez o STF.
O princípio da concordância prática consiste em coordenar os bens objeto da proteção constitucional na solução do problema, de tal sorte que estes mantenham a sua identidade, visando a preservação e concretização dos direitos previstos na Carta Magna.[7]
De um lado, o cidadão possui o direito à inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença ou cultos religiosos (art. 5º, VI, CF), crença religiosa, convicção política ou filosófica (art. 5º, VIII, CF), intimidade e vida privada (art. 5º, X); mas, de outro lado, o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado (art. 225), neste incluído o do trabalho (art. 200, inciso VIII), mediante redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII), tendo, assim o empregador dever constitucional de prover um meio ambiente do trabalho saudável e equilibrado, minimizando os riscos inerentes ao trabalho.
Sem a necessidade de ingressar em disputas polarizadas de crenças e valores, e considerando que inexiste direito absoluto, o princípio da proporcionalidade indica – por meio de seus subprincípios – o norte para as respostas que a sociedade tanto almeja nos momentos de insegurança jurídica.
Seguindo essa estrada é que se devem enfrentar os inúmeros questionamentos que estão em pauta, especialmente se o empregador pode ou não exigir a vacinação de seus empregados.
Pois bem, inicie-se a apreciação do princípio da proporcionalidade sob a luz do subprincípio da adequação – chamado de princípio da pertinência ou da validade do fim, pelo qual a medida restritiva tem de ser apta ou adequada para a proteção do outro direito ou bem protegido por normas constitucionais.[8]
Aqui a análise não é valorativa, pois basta saber se o meio utilizado para restringir um direito tem o condão de defender o direito escolhido. Considerando que a exigência da vacinação tem impede a maior contaminação no ambiente de trabalho, preenche-se o subprincípio da adequação.
Passa-se ao subprincípio da necessidade – também conhecido como princípio da exigibilidade ou menor interferência possível, do meio mais suave, do meio mais moderado, da proibição do excesso – que consiste em avaliar se a medida da restrição adotada é de fato necessária para garantir a efetividade do direito protegido.[9]
A pergunta é se há outro meio com a mesma eficácia que cause menor lesão ao direito preterido, e a resposta é que sob o ponto de vista da medicina (saindo de debates ideológicos, e consideradas a autorização da ANIVSA e outras autoridades sanitárias em diferentes países), inexiste outro meio que possua a mesma eficácia que a vacina para efeito de procurar manter o meio ambiente do trabalho livre da Covid-19, de modo que preenchido está o pressuposto relativo ao subprincípio da necessidade (ressalvado o teletrabalho em regime integral, cuja temática será brevemente tratada mais adiante).
Chega-se, portanto, à aplicação do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, cuja diferenciação conceitual dos anteriores reside na exigência de aferição de cunho valorativo, tendo como objeto de avaliação o núcleo da limitação adotada, enquanto nos primeiros a análise é restrita ao plano técnico.
O subprincípio da proporcionalidade busca certo equilíbrio entre os benefícios advindos da limitação e os prejuízos gerados para o direito que sofreu intervenção, de tal sorte que gere mais benefícios do que prejuízos, ou seja, ocorra um justo equilíbrio, sob pena de a medida não justificar o fim, revelando-se desproporcional.[10]
A análise deve ser no sentido de sopesar os custos do conflito, ou, em outras palavras, se a preservação do direito ao meio ambiente do trabalho saudável no curso da pandemia da Covid-19 sobrepõe-se prima facie ou não ao direito do empregado de não se submeter à vacinação.
É o momento de avaliar inclusive se a coletividade tem maior benefício, comparados os diferentes valores, como bem assentou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto durante o julgamento em destaque, afirmando que “embora a Constituição Federal proteja o direito de cada cidadão de manter suas convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais, os direitos da sociedade devem prevalecer sobre os direitos individuais, não se revelando legítimas escolhas individuais que atentem contra os direitos de terceiros.”
O Ministro Edson Fachin, em seu voto aduziu, por sinal, que “a imunidade coletiva é um bem público coletivo”, ao passo que o Ministro Marco Aurélio Mello pontuou que se trata de “ato solidário, considerados os concidadãos em geral”, e o Ministro Luiz Fux consignou que a “hesitação quanto à vacinação é considerada uma das 10 maiores ameaças à saúde global, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).”[11]
Na ocasião, o Ministro Luís Roberto Barroso abordou a importância da vacinação em massa como meio de erradicar uma série de doenças, sustentando a constitucionalidade da vacinação obrigatória, desde que (a) o imunizante esteja devidamente registrado por órgão de vigilância sanitária; (b) incluído no Plano Nacional de Imunização (PNI); (c) tenha sua obrigatoriedade incluída em lei ou sua aplicação determinada pela autoridade competente.
Observadas as diretrizes do abalizado voto do Ministro Barroso, nota-se que há situações extraordinárias em que o interesse individual pode se sobrepor ao coletivo diante da lesão sofrida, quando ferido de morte o núcleo essencial do direito preterido, no sopesamento de direitos constitucionais.
Nesse sentido, consignou o Ministro Ricardo Lewandowski, para quem é “flagrantemente inconstitucional” a vacinação forçada das pessoas, embora tenha reconhecido que “a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”.[12]
Há de se questionar, pois, se o direito do empregado estaria sendo violado as ponto de se tornar nulo na hipótese de ser obrigado a receber a vacinação contra a sua vontade, mormente diante de uma crença religiosa que o levasse a optar até mesmo pela morte ao invés do imunizante.
Nessa linha, diante da preservação do núcleo essencial do direito preterido, ministrar a vacina de modo compulsório parece não ser proporcional, se avaliada a restrição do direito em sede de exame do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Todavia, severas restrições não devem deixar de ser opostas pelo empregador, quando justificadas.
Nesses termos foi o voto do Ministro Nunes Marques, que considera que a obrigatoriedade da vacina só pode ser levada a efeito por meios indiretos, como a imposição de multa ou outras restrições legais. Por sinal, a tese fixada nas ADIs apreciadas, em apertadíssima síntese (aqui recortada para fácil visualização) foi de que: a) “vacinação compulsória não significa vacinação forçada”; b) o usuário pode se recusar a tomar a vacina, no entanto podem ser implementadas medidas indiretas que impliquem “restrição ao exercício de certas atividades” ou “restrição de frequência de determinados lugares”.
Para tanto, nos termos da tese fixada, há de existir previsão legal expressa ou derivada da lei, com bases científicas e análises estratégicas pertinentes, acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, sempre respeitadas a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas, atendidos os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
Significa dizer, o poder diretivo não chega ao ponto de obrigar a vacinação, mas possui força suficiente para exigir que o empregado só ingresse na sede da empresa se vacinado, evidentemente a partir do momento em que a vacina esteja disponível para a faixa de idade, comorbidade ou outras classificações em que o empregado se enquadre.
Mas, e se o empregado não apresentar o comprovante de vacinação, recusando-se à imunização, como proceder?
Antes de mais nada é salutar que a empresa reforce as suas políticas de enfrentamento da Covid-19, conscientizando seus empregados para a importância da imunização, informando previamente ao empregado que a sua entrada não será autorizada a partir do momento em que a vacina estiver disponível para o seu grupo, se não estiver ao menos inscrito no programa de vacinação, e, posteriormente, comprovar que teve o imunizante ministrado.
Essa mesma regra empresarial – a ser formulada por meio de política própria – deve prever expressamente, de modo geral e impessoal, que a falta de comprovação de que o empregado tomou a vacina ou está na fila em seu grupo correspondente implicará na proibição de ingresso aos estabelecimentos empresariais, inviabilizando a continuidade do contrato de trabalho.
No particular, lembre-se que o empregador irá orientar o empregado e adotar política escrita, de modo que a sua recusa a cumprir a regra empresarial justificada e razoável pode motivar a rescisão do contrato de emprego, mormente se este ficar inviabilizado diante da inexistência de alternativa.
Caso assim ocorra, especialmente na controvertida aplicação da justa causa, a análise do poder judiciário deverá ser calcada na proporcionalidade da medida adotada, sendo recomendável, a fim de evitar maiores dissabores derivados de pretensões voltadas à dispensa abusiva ou reversões de justa causa, que a organização empresarial procure alternativas.
Com efeito, nas hipóteses em que o empregado possui comprovada crença religiosa que veda que a vacina seja ministrada, se as atividades forem passíveis de ser executadas à distância, o teletrabalho em regime integral se revela como alternativa.
Nessa conjetura, a ausência de ingresso na empresa representa meio menos restritivo do direito do empregado na manutenção das suas crenças atingindo a mesma finalidade da vacina, se considerado isoladamente o ambiente de trabalho.
Destarte, à luz do subprincípio da necessidade, é possível entender que há meio menos gravoso ao empregado do que a demissão por justa causa, devendo tal circunstância ser sopesada pelo empregador a fim de evitar eventual passivo trabalhista.
Não se trata de conferir tratamento diferente, mas isonômico, e a isonomia consiste em tratar os desiguais de modo desigual, na medida da sua desigualdade.
Todavia, se o teletrabalho não for uma alternativa, e diante da impossibilidade de continuidade do contrato de trabalho, duas parecem ser as alternativas: (a) negociar, de preferência de modo coletivo (quando não mediante assistência do sindicato representante da categoria profissional em situação individual ou Ministério Público do Trabalho) a suspensão do contrato de trabalho sem vencimento, como medida de preservação do emprego e das crenças inarredáveis que o empregado possui; (b) dispensa sem justa causa.[13]
Outrossim, não esqueçam que a coleta de dados relativa ao uso ou não da vacina é dado sensível, sujeita ao enquadramento em uma das bases legais dispostas no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados.
Até uma próxima oportunidade, de preferência já imunizados!
[1]http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1
[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55669362
[3] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1
[4] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1
[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª e. Coimbra: Almedina, 1991.
[6] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade, São Paulo: LTr, 2015.
[7] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade, São Paulo: LTr, 2015.
[8] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade, São Paulo: LTr, 2015.
[9] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade, São Paulo: LTr, 2015.
[10] OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Cláusula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade, São Paulo: LTr, 2015.
[11] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1
[12] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1
[13] Não se está aqui a dizer que a justa causa não possa ser aplicada se preenchidos todos os requisitos trazidos no julgado do STF, mas sim que tal implica em elevado risco à organização empresarial, mormente quando se tratar de empregado que possui comprovada crença religiosa que o impeça de tomar o imunizante. Isso sem falar no risco de se entender pela abusividade da dispensa (ainda que sem justo motivo) com consequências econômicas bastante significativas.