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O certificado de vacinação e a (in)constitucionalidade da Portaria 620

Publicado originalmente em conjur.com.br

Por Ricardo Calcini e Leandro Bocchi de Moraes

O governo federal, por meio do Ministério do Trabalho e Previdência, editou a Portaria nº 620, de 1º deste mês [1], de modo que o seu artigo 1º, §1º, dispõe ser proibida a exigência de comprovante de vacinação tanto na contratação, quanto na manutenção do emprego [2].

No mesmo sentido, a portaria editada, em seu artigo 1º, §2º, preceitua que “considera-se prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação”.

Primeiramente, impende frisar que existe em nosso ordenamento jurídico a Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995 [3], que veda a determinação de apresentação de atestados de gravidez e esterilização, assim como proíbe quaisquer práticas discriminatórias, de uma forma geral, para fins admissionais ou de continuidade da relação jurídica de trabalho.

De um lado, o artigo 87, II, da Constituição Federal [4] prevê a possibilidade de o ministro de Estado promulgar instruções para dar concretude a leis, decretos e regulamentos. Trata-se, portanto, de uma prerrogativa constitucional.

Dito isso, observe que, ao se cotejar a Portaria nº 620/21 com a Lei nº 9.029/95, ambas possuem uma grande similitude, a ponto de existir a mesma redação entre elas, sobretudo no caput do artigo 1º, como também no artigo 4º. Logo, infere-se que a norma ministerial editada reproduziu em, quase que em sua totalidade, os mesmos dizeres da Lei nº 9.029/95.

Se é verdade que, numa primeira análise, tal recomendação do governo federal considera discriminatória a exigência do certificado de vacinação, de igual relevância pode-se dizer que ela é contraditória, pois o artigo 3º [5] informa que os empregadores poderão oferecer aos trabalhadores a testagem periódica, e, nessa hipótese, torna-se obrigatória a apresentação do cartão de vacinação.

Lado outro, o artigo 22, I, da Constituição Federal [6] estabelece que a União federal tem competência privativa para legislar sobre Direito do Trabalho, de forma que a referida portaria já nasce em certa medida de relativa inconstitucionalidade.

Isso porque, além de penetrar na questão de competência de lei federal, afronta o poder diretivo do empregador, esmorece a vacinação e, mais, sobrepõe o interesse individual em relação ao interesse coletivo.

Destarte, em observância ao princípio da reserva legal, não poderia a portaria disciplinar algo que não esteja mencionado na lei.

Vale lembrar que os artigos 200 [7], VIII, e 225 [8] da Lei Maior afirmam que o meio ambiente saudável é um direito de todos, cabendo ao poder público e a coletividade o dever de preservação.

Nesse panorama, o Ministério Público do Trabalho emitiu a nota técnica do GT Covid-19 nº 05/2021 [9], na qual orientou os empregadores a fiscalizarem e exigirem a certificação da vacinação para o ingresso no ambiente de trabalho, assim como prestigia o incentivo à vacinação.

E, para melhor esclarecer sobre esse tema, oportunas são as palavras do professor Guilherme Guimarães Feliciano [10]“Todo trabalhador tem que obrigatoriamente se vacinar? Em princípio, sim, para não criar riscos inclusive para outros trabalhadores. Agora, se tiver uma doença autoimune, um quadro alergênico, aí ele pode demonstrar isso e não se vacinar e o empregador deverá encontrar uma solução”, afirma. “Já se o motivo for ideológico, ele pode ser advertido, ser suspenso, e se insistir, pode ser demitido por justa causa. Caso contrário, um trabalhador, por motivos ideológicos, colocaria todos os outros no ambiente em risco”.

O Tribunal Superior do Trabalho, inclusive, através do ATO GP.GVP.CGJT 279/2021 [11], passou a exigir que para o ingresso e circulação em suas dependências a apresentação de comprovante de vacinação contra a Covid-19 é indispensável.

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça de São Paulo, através da Portaria nº 9.998/21 [12], determinou a exigência do comprovante de vacinação para o ingressos em seus prédios.

Em São Paulo, por decisão do prefeito e, com base no Decreto nº 60.442, de 6 de agosto deste ano, que tornou obrigatória a vacinação contra a Covid-19 para os servidores públicos e funcionários municipais da administração direta, indireta, autarquias e fundações, houve o desligamento de três pessoas que ocupavam cargo de comissão diante da recusa à imunização [13].

Indubitavelmente, essa temática versa sobre o interesse da coletividade, já havendo, inclusive, o posicionamento da Suprema Corte sobre esse assunto, no julgamento das ADIs 6586 e 6587.

E, nesse cenário, não por outra razão que a Rede Sustentabilidade ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 898 [14], pleiteando a suspensão dos dispositivos da portaria do governo federal. O ministro relator, Luís Roberto Barroso, determinou a oitiva da autoridade que emanou o ato normativo, ministro Onyx Lorenzoni, para que, após as informações prestadas, pudesse apreciar os pedidos cautelares suscitados.

É cediço que o artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho não disciplina expressamente que a não apresentação do cartão de vacinação seja motivo para justa causa, até porque a norma celetária não sofreu nenhum tipo de alteração legislativa nesse período de pandemia.

De qualquer sorte, o artigo 8º da CLT disciplina que “as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”, dispositivo este que justifica, em arremate, a necessidade de exigência do certificado de vacinação.

[1] Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-mtp-n-620-de-1-de-novembro-de-2021-356175059. Acesso em 08/11/2021

[2] “Artigo 1º (…) – §1º Ao empregador é proibido, na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação, certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez”.

[3] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9029.htm. Acesso em 08/11/2021.

[4] “Artigo 87 – (…).II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos”.

[5] “Artigo 3º – Com a finalidade de assegurar a preservação das condições sanitárias no ambiente de trabalho, os empregadores poderão oferecer aos seus trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela Covid-19 ficando os trabalhadores, neste caso, obrigados à realização de testagem ou a apresentação de cartão de vacinação”.

[6] “Artigo 22 – Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”.

[7] “Artigo 200 – Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: (…).VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”.

[8] “Artigo 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

[9] Disponível em file:///C:/Users/ncnun/Downloads/nt-gt-covid-19-5-2021-1%20(1).pdf. Acesso em 09/11/2021.

[10] Disponível em https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/governo-proibe-demissao-de-trabalhadores-recusaram-vacina-contra-covid-19-01112021. Acesso em 09/11/21.

[11] Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/194771/2021_atc0279_tst_cgjt.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 08/11/2021.

[12] Disponível em https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=130426. Acesso em 08/11/2021.

[13] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/prefeitura-de-sao-paulo-anuncia-demissao-de-funcionarios-que-recusaram-vacina/. Acesso em 09/11/2021.

[14] Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6290927. Acesso em 09/11/2021.

 

 é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador Acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (Revista Consultor Jurídico – ConJur), palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

Leandro Bocchi de Moraes é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo “Trabalho Além do Direito do Trabalho” da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

 

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