Publicado originalmente em conjur.com.br
Durante o julgamento da prescrição do FGTS (ARE 70.912), o ministro Fux proferiu no plenário do Supremo Tribunal Federal uma impropriedade, que como tal poderia ser reconhecida pelos estudantes de terceiro ano da Faculdade de Direito, aproximadamente assim: o FGTS é uma taxa que o empregador desconta do salário do trabalhador e na dispensa paga sobre o saldo dessa conta uma multa de 10%. Provavelmente alertado — as imagens da TV Justiça indiciam isso, por algum assessor, ele emendou parece que esse valor recentemente foi alterado para 40%.
Impropriedade porque Fundo não é cobrado do empregado, mas acrescido ao salário, e a multa, na verdade, indenização, de 40% está nesse importe desde 1988, não fora, em 2014, alterada “recentemente”.
Não se espera de ninguém que saiba tudo, mas tal assertiva é emblemática para explicar — não justificar — as sucessivas barbaridades que o STF está praticando contra o Direito do Trabalho. Por princípio constitucional, presume-se a boa-fé, logo a resposta deve estar no desconhecimento.
Sob a bandeira do Tema 725 (terceirização irrestrita), o tribunal vem praticando duas torturas conceituais diferentes. De um lado, não diferencia terceirização — que constitui a entrega para pessoa jurídica com capacidade econômica — está na Lei 6019/74, artigo 4º-A [1] — para assumir uma fatia do ciclo produtivo de um empreendimento — de pejotização, prática ilícita de trocar o CPF do empregado por um CNPJ, barateando o custo da mão de obra e sonegando impostos, para aumentar o lucro.
A outra tortura conceitual está na incompreensão do que venha a ser a primazia da realidade. O Direito do Trabalho assenta-se sobre um importante princípio, que se chama (da) primazia da realidade. Segundo essa norma de interpretação, aplicação e colmatação de lacunas, nenhum documento, procedimento, ato ou fato sobrepõe-se sobre a realidade vivida pelo empregado, se o objetivo for o de fraudar a proteção jurídica do trabalhador. O princípio reveste-se de tamanha importância, que o capítulo de Teoria Geral da CLT, os artigos de abertura da octogenária Consolidação, positivou-o:
“Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.”
Um contrato, um recibo, uma regra empresária, um regulamento de empregador. Nada prevalece sobre a realidade dos fatos, para configuração da relação de emprego e de seus consequentes.
Tome-se um exemplo infantil, para quem milita na área, cartões de ponto têm a finalidade legal (artigo 74, CLT) de registrar a jornada de trabalho. Todos os dias, no foro, há instruções que demonstram que cartões, registrados, mecânica, manual ou eletronicamente, até assinados pelos trabalhadores, não correspondem à jornada efetiva de trabalho. Pronto: os documentos criados para fraudar a lei protetiva devem ser considerados nulos.
Diariamente, nos últimos meses, num crescendo estonteante do que está a promover há mais de uma década [2], o STF, por decisões monocráticas ou colegiadas, vem sufocando acórdãos da Justiça do Trabalho, notadamente no tema vínculo de emprego.
A lei conceitua o contrato de emprego como um acordo tácito ou expresso, que corresponde à relação de trabalho (artigo 442, CLT). É literalmente tácito (ou expresso). Quer dizer, se a pessoa trabalha por alteridade em favor de outrem, forma-se um contrato de emprego, com ou sem CTPS, com ou sem instrumento escrito, com ou sem explicitação.
Vem daí que a lida do juiz do trabalho, quotidiana, está grandemente voltada a ouvir provas para distinguir contratos de emprego de outros contratos, outras formas de prestação de serviços. Porque tudo nasce na realidade, que tem principiologicamente, primazia.
A segunda turma do STF, em decisão recente, na Reclamação Constitucional 53.688 (noticiada aqui) houve por bem, com maioria de votos, cassar decisão do TST, que mantinha o vínculo de emprego entre empregador e um corretor. Diz a notícia, o acórdão ainda pende de publicação, que o corretor de valores fora empregado de 2005 até 2007, passando a “PJ” até 2015, quando voltou a ter “carteira assinada”.
Milagres de conversão acontecem poucos. Saulo, no Novo Testamento, tendo ouvido a voz de Jesus, caiu, literalmente, do cavalo e se converteu de perseguidor dos cristãos em seguidor do Cristo, com o nome alterado para Paulo. Não acontece todo dia. Quem é empregado, mantém-se empregado, ainda que haja baixa em carteira e formalização de um “contrato” de pessoa jurídica, se as atividades, a rotina, sua inserção no ciclo produtivo do tomador de serviços, por alteridade, continua igual. Fácil julgar, até para um juiz recém-iniciado na carreira.
Isso percebeu o experiente TRT-1, depois de fazer o que o STF não pode — não apenas não deve, mas juridicamente não pode — que é examinar os fatos controvertidos e revolver as provas. Concluiu: “Reconhece-se a unicidade contratual no caso de empregado que primeiro é admitido pelo regime da CLT, depois como ‘pessoa jurídica’ e, por fim, retorna ao regime celetista sem qualquer alteração fática na forma de prestação dos serviços, do local de trabalho (sede da própria empresa) e remuneração e que, ademais, trabalha de forma exclusiva e subordinada”.
Teria dito o ministro Gilmar Mendes, que a decisão seria descolada da realidade.
Por passos, então, para não ficar complicado: (1) o corretor da bolsa de valores não tem capacidade econômica, ainda que receba comissões de cem mil por mês, para responder pelos riscos econômicos causado por sua atividade, encargo que é da corretora, sua empregadora; (2) o corretor de corretora, cumpre os desígnios da contratante. Quer-se com isso dizer, trabalha por alteridade; (3) nessa condição, ele não é dono das próprias regras, expressão em português para traduzir a palavra original do grego, equivalente a autonomia (auto nomos); e (4) quem ganha muito, como quem ganha pouco, não é, só por isso, hipo ou hipersuficiente. A hipossuficiência decorre da falta de propriedade dos meios de produção. Por isso, a lei, ao conceituar empregador, aponta que ele, “assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. Outro preconceito Supremo, de quem nada conhece do Direito do Trabalho.
Nem a ciência, nem o salário tiram a hipossuficiência do trabalhador frente ao empregador. Como tampouco esses elementos deixam o consumidor mais suficiente frente ao fornecedor. Espere sentado se um dia encontrar um acórdão do STF a dizer que o cidadão, porque era rico, ocupava posição de hipersuficiência frente à, por exemplo, companhia aérea que perdeu suas bagagens. Ou nem espere.
A decisão do TRT-1, nesse caso, apurou que a definição da clientela e do local de trabalho, assim como a própria realização das atividades eram feitos pela e em nome da instituição, e não em nome pessoal do “autônomo”. Aplicou a regra legal da primazia da realidade.
Em modelo de decisão com cognição sumária e estreita via do contraditório — a reclamação constitucional, que, na hipótese, não contou sequer com a manifestação do prejudicado, como se extrai do andamento — o tribunal se arvora a patentear seu desconhecimento do Direito do Trabalho, inquinando, ainda, de alienada a decisão antecedente, para reexaminar fatos e provas, e julgar, invadindo a competência, a reclamação, não constitucional, mas trabalhista.
Com isso, no exercício de sua autoridade constitucional e moral, o Supremo está a patrocinar atrocidades contra os direitos individuais dos trabalhadores, já que incentiva a conversão da Legislação do Trabalho em lei facultativa — facultas agendi, ensinava o professor Gofredo da Silva Telles. Não tardará para que uma decisão bem colada à realidade do interesse do capital, reconheça a normatividade da “CLTFlex”, um modelo de fraude em que se pagam alguns direitos trabalhistas ao empregado, sonegando outros muitos, a começar da proteção previdenciária, pois não há registro em carteira.
A decisão que absolve um criminoso do artigo 157, do Código Penal, não declara a inexistência do crime de roubo. Como assim uma decisão que reconheça o vínculo de emprego entre parceiro e plataforma, corretor PJ e corretora, médica e hospital, manicure e salão “parceiro”, pedreiro MEI e construtora, não elimina a possibilidade abstrata de haver, na realidade, outras formas de contratação.
A Constituição não prestigia com essa força a livre iniciativa, mas tem por fundamento do estado de Direito o valor social da livre iniciativa (artigo 3º, IV), ao lado do valor social do trabalho. Tanto que o direito à propriedade vem subordinado, no artigo 5º, à função social da propriedade.
No mundo do trabalho, a pessoa humana é o centro. Confundem-se o objeto da alienação — da venda, para receber salário — com o próprio alienante. Deixa-se no trabalho, parte do corpo, da memória, da inteligência, da força, da saúde, porque aos despossuídos — ainda que recebam comissões de cem mil, não são possuidores dos meios da produção — só resta vender a força de trabalho. Proteger sua dignidade constitui comando constitucional (artigo 3º, III) e o funcionamento das empresas, que ocupam empregados, no Brasil, funda-se na função social da propriedade (artigo 170, III, da Constituição).
Bem havia apreendido a controvérsia, o relator da reclamação, ministro Ricardo Lewandowski, ao rejeitá-la com esses fundamentos:
“Entretanto, observo que a controvérsia posta no juízo do trabalho não se fixou na validade da terceirização de mão de obra, esta já admitida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, mas sim, na relação existente entre o tomador do serviço e aquele que trabalhava como terceirizado.”
O óbvio: a decisão do Regional carioca não estava a questionar se a terceirização é ou não admitida em abstrato, mas a dizer, que, examinados fatos e provas, aquela relação específica foi de fraude.
No âmbito do Direito do Trabalho, o STF eliminou toda possibilidade de fraude. Logo numa relação que, por conta dela, coloca cerca de metade da população economicamente ativa na informalidade, sem direitos, sem garantias, sem proteção previdenciária, sem dignidade. Triste função do tribunal guardião da Constituição Cidadã: trocar a proteção da pessoa trabalhadora por formalidades escritas, ilações descoladas da realidade e equívocos conceituais. Em total descompasso com a promessa do recém-eleito presidente do tribunal, que indicou como primeiro eixo de sua gestão: “contribuir para o desenvolvimento econômico, social e sustentável do Brasil”.
[1] Art. 4o-A. Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.
[2] Leia-se uma de tantas demonstrações em Justiça Política do Capital: a Desconstrução do Direito do Trabalho por meio das Decisões Judiciais, de Grijalbo Coutinho Fernandes, editora Tirant Lo Blanch Brasil, junho de 2021.
Marcos Neves Fava é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara de Vitória da Conquista (BA), no TRT-5, mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.