Aumentam os casos — e as condenações — de assédio moral institucional, quando a empresa constrange funcionários com práticas abusivas
Usar saia ou “dançar na boquinha da garrafa” quando não atinge uma meta. Ganhar um “troféu tartaruga” por ser o mais lento da equipe. Receber um contracheque com uma frase dizendo que é “fraco e derrotado”. Ser forçado a fazer a dança das cadeiras ou da laranja com colegas. Ser remanejado para trabalhar no cemitério municipal.
Pode parecer difícil de acreditar, mas todas essas são situações reais, vivenciadas por profissionais dentro de empresas privadas e órgãos públicos. É o chamado assédio moral coletivo ou institucional, prática que vem crescendo no país, motivada, principalmente, pelo aumento da pressão e cobrança por resultados. Funcionários mais conscientes de seus direitos e órgãos fiscalizadores mais atuantes também têm contribuído para que casos como esses venham à tona.
Em 2013, foram firmados 460 termos de ajustamento de conduta (TAC), registradas 3.641 denúncias, ajuizadas 219 ações civis públicas e abertos 2.707 procedimentos administrativos sobre assédio moral coletivo, de acordo com levantamento feito pelo Ministério Público do Trabalho para o projeto “Assédio é imoral”, da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho.
Crise econômica motiva metas impossíveis
Autora da tese “O direito fundamental à saúde mental no ambiente de trabalho: o combate ao assédio moral institucional”, a doutora e especialista em direito do trabalho, Adriana Calvo, investigou os 76 processos já julgados sobre assédio moral institucional no Brasil — em 53 deles, as empresas foram condenadas ao pagamento de dano moral, e, em 23, os tribunais entenderam que não houve ocorrência de assédio. A pesquisa foi feita em tribunais trabalhistas de todo o país até o dia 1º de dezembro de 2012.
— A crise econômica faz as empresas colocarem metas cada vez mais abusivas, impossíveis até. No Brasil, associados a elas, as companhias criam castigos bastante criativos. O funcionário, por sua vez, não aguenta e faz denúncia ou entra com ações — afirma Adriana.
No estudo, a advogada detectou que a maior parte das empresas envolvidas nos casos de assédio coletivo são de médio e grande porte e dos setores comerciário e bancário:
— A maioria dos casos estão ligados a metas: são formas de castigo a que o trabalhador é submetido por não atingi-las. É quando é praticada a gestão por estresse ou por medo, método de gestão que, inclusive, é recomendado em algumas técnicas de administração de empresas.
No livro “Música e humilhação — uma visão através das ações de indenização por apoio moral”, Susan Christina Forster avalia 223 acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais do Trabalho de diferentes estados no período de 2000 a 2010. A advogada descobriu que, em muitos casos, obrigar o funcionário a dançar ou cantar ao som de músicas — especialmente as de cunho erótico e sensual — está associado às práticas de assédio moral coletivo.
— É um tipo de violência chamada de invisível. A música é associada a festa, espiritualidade, lazer… Poucas pessoas têm consciência que existe o uso da música como violência, não só física, mas também psicológica. Práticas sutis podem ser usadas para depreciar e humilhar no ambiente de trabalho — destaca Susan Forster.
Casos começaram a aparecer há 5 anos
E isso pode fazer com que seja difícil, para um funcionário ou equipe, identificar se está sendo vítima do bullying corporativo. Porque, muitas vezes, o assédio corporativo vem disfarçado de brincadeira, como em gincanas que propõem prendas e atividades vexatórias.
— Além disso, o instituto do assédio moral é muito novo, começou a ser efetivamente tratado no início dos anos 2000 e, aos poucos, vem ganhando mais visibilidade — destaca o advogado Fernando Cassar.
Quando se fala em assédio moral coletivo, então, a coisa é ainda mais recente. De acordo com a advogada Flavia Lepique, sócia do Castro, Barros, nos últimos cinco anos é que começaram a aparecer mais casos:
— Além da questão das metas e do aumento da pressão, existe também uma fiscalização maior por parte do Ministério Público do Trabalho — acredita Flavia.
O que provoca, também, o aumento da preocupação das empresas para evitar esse tipo de comportamento em seu ambiente.
— Muitas empresas estão comprometidas, promovem seminários e criam comitês de combate ao assédio moral coletivo. As que não estão atentas podem acabar pagando um preço alto — ressalta Susan Forster.
Em outubro último, o Walmart foi condenado a pagar R$ 22,3 milhões por dano moral coletivo por obrigar funcionários a cantarem ou dançarem hino motivacional e a pedir permissão para ir ao banheiro — a maior multa já paga no país, segundo especialistas. Um dos casos pioneiros de assédio moral coletivo é o da Ambev, que, em 2006, teve de pagar R$ 1 milhão por obrigar vendedores a dançarem “na boquinha da garrafa”, fazerem flexões ou assistirem reuniões em pé se não batiam metas.
Denúncia pode ser individual
Para que o assédio moral coletivo seja configurado não é necessário que muitas pessoas entrem com uma ação contra a empresa. Basta que um funcionário acione a Justiça ou faça uma denúncia ao Ministério Público.
— Na maioria dos casos, são ações individuais, de um funcionário que entra contra a empresa dizendo que sofreu assédio moral individual, e o juiz percebe que não é individual, mas institucional, porque há outras denúncias e ações contra essa organização — explica a advogada Adriana Calvo.
Das 76 ações que Adriana avaliou para a sua tese , “O direito fundamental à saúde mental no ambiente de trabalho: o combate ao assédio moral institucional”, somente quatro foram ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho e nenhuma por sindicatos — os organismos que têm legitimidade para entrar com ação coletiva.
— Questiono onde está o movimento sindical, que está fazendo pouco para atuar nessa questão. Eles alegam falta de conhecimento do assunto — pontua a advogada trabalhista.
Já no caso do Ministério do Trabalho, Adriana acredita que há poucas ações julgadas em razão dos acordos que são firmados com as empresas, os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC).
— A ação só vai para frente se a companhia se recusa a assinar o TAC — explica.
E o que cabe ao profissional fazer se julgar estar sendo vítima, junto com seus colegas, de assédio moral coletivo?
— Se houver abertura, o funcionário pode conversar com o assediador, pois nem sempre o outro tem noção de que o comportamento prejudica a equipe, afinal, o que é engraçado para um, pode não ser para o outro — diz a coach Waleska Farias, acrescentando que o segundo passo é procurar o RH. — Ou até mesmo a área de compliance, quando a empresa é maior e tem uma estrutura nesse sentido. Caso nada funcione pode ser necessário acionar a Justiça.
E, caso falte coragem para tomar a decisão de reclamar ou denunciar, os especialistas lembram que há canais em que o profissional pode relatar a situação de forma anônima.
— Se o funcionário acha que corre riscos, o melhor é fazer uma denúncia anônima — conclui o advogado Fernando Cassar.
Fonte: O Globo