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Contratos de aprendizagem – MP 1.116 e decreto 11.061 – Novas polêmicas e o velho debate sobre a base de cálculo

Publicado originalmente em migalhas.com.br

Por Luiz Carlos Amorim Robortella e Antonio Galvão Peres

Em 04 de maio de 2022 a MP 1.116 e o Decreto 11.061 introduziram profundas mudanças no modelo de aprendizagem no Brasil.

As inovações são criticadas por alguns e festejadas por outros, gerando incerteza sobre o resultado da tramitação no Congresso Nacional.

Essas polêmicas serão examinadas no webinar “MP 1.116/2022 e Decreto 11.061/2022. Perspectivas para a aprendizagem no Brasil” que organizamos com o Migalhas para o próximo dia 30.06.2022.

As inscrições estão abertas 1.

O escopo do webinar é apresentar visões diversas sobre as mudanças, sendo exemplo as divergências entre o CIEE e o SENAI.

MONICA BATISTA V. DE CASTRO – especialista do CIEE que estará presente no webinar – criticou as inovações no jornal O Povo de 14.05.20222:

“(…) todo o programa aprendiz está ameaçado. A publicação da Medida Provisória 1116 e do Decreto 11.061 no último dia 4/5/2022 visa mudar de forma drástica e irresponsável todas as diretrizes deste programa, observando-se a desestabilização de práticas que estavam mudando e ressignificando a vida de muitos jovens.

As publicações alteram muitos princípios da aprendizagem, como a suspensão de multa para empresas que não estão cumprindo a cota, a condição especial para setores com baixa contratação de aprendizes, a contabilização do aprendiz mesmo após a sua efetivação, a contabilização do dobro de aprendizes caso o jovem ou adolescente seja vulnerável, entre outros.

Essas medidas geram uma série de reflexões. Podemos chamar de “incentivo” ao emprego propostas que fazem o jovem vulnerável ou com deficiência, se contratado, “valha” por dois? Ou mesmo, ao efetivar um aprendiz, uma empresa ficar desobrigada de abrir uma nova vaga por um ano? Quantos jovens deixarão de ter acesso ao mundo do trabalho devido a esses tais “incentivos”?

Na concepção do Centro de Integração Empresa-Escola – CIEE – e de tantas outras instituições que trabalham há anos com a aprendizagem -, o novo regramento é danoso aos jovens, pois reduz o acesso ao mundo do trabalho e precariza a aprendizagem.”

No outro extremo, EDUARDO RODRIGUES, da Agência Estado, destaca que “ao contrário de outras entidades da aprendizagem, SENAI apoia MP que altera jovem aprendiz”3.

Destaca o SENAI o baixo índice de cumprimento da cota no modelo atual, o pequeno percentual de aprendizes “efetivados” nas empresas e a alta concentração em atividades administrativas, embora outras não sejam preenchidas.

A partir dessas premissas, o gerente executivo de Educação Profissional e Tecnológica da CNI, Felipe Esteves Pinto Morgado, pondera:

“Não adianta formar 500 mil aprendizes por ano, sendo que eles não conseguem entrar no mercado de trabalho. A MP permite que o aprendiz dê continuidade aos seus estudos. Não estamos falando de estagiários de luxo, não é um aprendiz tecnólogo na largada. Mas a indústria é mais complexa e exige formação mais diferenciada.”

Várias questões surgem em face desses novos critérios:

a) A ação afirmativa para estimular a contratação de jovens vulneráveis (agora contados em dobro na cota) é válida ou compromete o instituto por potencialmente reduzir o número total de aprendizes?

b) Manter o aprendiz “efetivado” por mais doze meses na contagem da cota é estímulo razoável para a “efetivação” ou censurável por reduzir a cota para novos aprendizes?

c) As mudanças nos prazos máximos, o tratamento especial ao deficiente e a ampliação de cursos e entidades qualificadas são adequados ou podem precarizar o instituto?

Em um país que há décadas sofre com a baixa qualificação profissional e péssimos índices na educação em geral4, o tema é de grande relevância e deve ser enfrentado com seriedade.

Algo precisa ser feito, mas estaríamos no caminho certo? É o que se pretende esclarecer com as lições de renomados especialistas nesse webinar.

Nesta coluna de hoje não faremos spoiler das teses e argumentos. Preferimos destacar aspecto já tratado em outras oportunidades: a base de cálculo da cota, objeto de sutil alteração.

Como se sabe, nos termos do artigo 428 da CLT, “o empregador se compromete a assegurar” ao aprendiz “formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação”.

Muitas atividades são obviamente incompatíveis com a aprendizagem, tais como corte de cana, carga e descarga de caminhões, limpeza de calçadas e outras, eis que não exigem formação profissional sistemática e metódica.

Coerentemente, a base de cálculo da cota prevista no artigo 429 é o “número de trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional”.

Funções que dispensam formação profissional metódica não podem ser consideradas para cota de aprendizes, mas, na prática, empresas são autuadas em razão de interpretação ampliativa dos critérios.

O artigo 429 da CLT, ao restringir a base de cálculo às funções que “demandem formação profissional”, é absolutamente coerente com as finalidades da aprendizagem.

Lamentavelmente sua aplicação vem sendo deformada pela equivocada interpretação do sistema legal, até mesmo cristalizada em normas de hierarquia inferior como decretos e regulamentos.

O artigo 10 do Decreto n. 5598 de 2005 inovou ao dispor que a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO deve ser considerada “para a definição das funções que demandem formação profissional”, posteriormente mantida pelo artigo 52 do Decreto 9.579 de 2018.

Todavia, esse critério se indispõe claramente com letra e finalidade do artigo 429 da CLT acima reproduzido, em razão da enorme amplitude da CBO, alcançando atividades incompatíveis com o conceito legal de aprendizagem tais como “embaladores a mão”, “trabalhadores de carga e descarga” e “garis”.

Para piorar, há contradições intoleráveis na CBO, como “trabalhadores de carga e descarga” (código 78325):

“Para o exercício dessas ocupações não se requer nenhuma escolaridade e cursos de qualificação. O tempo de experiência exigido para o desempenho pleno da função é de menos de um ano. A(s) ocupação(ões) elencada(s) nesta família ocupacional, demandam formação profissional para efeitos do cálculo do número de aprendizes a serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, exceto os casos previstos no art. 10 do decreto 5.598/2005.”

É visível o paradoxo. A CBO reconhece desnecessárias escolaridade e qualificação nessa atividade e, ao mesmo tempo, afirma necessária a formação profissional e a inclui na base de cálculo da aprendizagem.

Sempre sustentamos6 que a CBO não deve ser tomada em termos absolutos, por se tratar de mero indicativo.

Em face da lei, estão excluídas da base de cálculo da cota funções que exijam cursos de nível técnico ou superior, cargos de confiança e as que dispensam formação profissional metódica.

A CBO deve ser aplicada com adequação ao texto legal e, portanto, apenas atividades compatíveis com o artigo 428 da CLT valem para o número mínimo e máximo de aprendizes.

Os tribunais frequentemente adotam esta posição moderada, que respeita os objetivos da legislação:

“MANDADO DE SEGURANÇA – MENOR APRENDIZ – FIXAÇÃO DA COTA – FUNÇÕES QUE EXIJAM FORMAÇÃO PROFISSIONAL – Nos termos dos artigos 428 e 429 da CLT, para a quantificação do número de aprendizes a serem contratados, considera-se apenas as funções que dependam de formação técnico-profissional metódica, caracterizada por atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressivas, desenvolvidas no ambiente de trabalho. Assim, mantém a segurança deferida em primeiro grau, a autoridade coatora não observou o referido requisito, fixando o numero de aprendizes com base apenas no fato de as funções estarem catalogadas na Classificação Brasileira de Ocupações, elaborada pelo Ministério do Trabalho em Emprego.” (TRT 03ª R. – RO 1490/2009-019-03-00.6 – Rel. Juiz Conv. Fernando Luiz G. Rios Neto – DJe 06.12.2010 – p. 142).

“CONTRATAÇÃO DE MENORES APRENDIZES, RESTRIÇÕES – Ainda que o artigo 10 do Decreto 5.598/05 indique que a Classificação Brasileira de Ocupações deva ser considerada para definição das funções que demandam formação profissional, como quer a União Federal, essa conceituação não pode ser dissociada dos critérios maior de que a contratação para aprendizagem, deve visar sempre e principalmente a formação educacional dos aprendizes.” (TRT 03ª R. – RO 613/2010-105-03-00.0 – Rel. Juiz Conv. Milton V. Thibau de Almeida – DJe 27.04.2011 – p. 81).

“CONTRATO DE APRENDIZAGEM – FIXAÇÃO DA COTA – FUNÇÕES QUE DEMANDAM FORMAÇÃO TÉCNICO PROFISSIONAL – Nos termos do que se afere do artigo 428 da CLT, a formação técnico profissional ofertada pelo empregador no contrato de aprendizagem deve contribuir para o aprimoramento físico, moral e psicológico do aprendiz, viabilizando, com o trabalho, a vivência prática dos ensinamentos teóricos que lhe foram repassados no ensino fundamental ou nos cursos de formação profissional. A indicação pela Classificação Brasileira de Ocupações não é, por si só, fator suficiente para autorizar a contratação para aprendizagem se as funções ali enquadradas como de formação técnico profissional não demandam aprimoramento intelectual.” (TRT 03ª R. – RO 674/2010-107-03-00.0 – Rel. Des. Emerson Jose Alves Lage – DJe 07.03.2011 – p. 119).

Há julgados contrários, levando ao absurdo de, interpretando elasticamente a CBO, incluir o trabalhador da cultura de cana-de-açúcar na base de cálculo da cota:

“FISCALIZAÇÃO DO TRABALHO – APRENDIZES – TRABALHADOR DA CULTURA DE CANA-DE-AÇÚCAR – INCLUSÃO DA BASE DE CÁLCULO – De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações, o trabalhador da cultura de cana-de-açúcar integra a base de cálculo do número de aprendizes a serem contratados pelos estabelecimentos, nos termos do artigo 429 da Consolidação das Leis do Trabalho.” (TRT 17ª R. – RO 43100-33.2008.5.17.0161 – Relª Desª Claudia Cardoso de Souza – DJe 24.02.2011 – p. 66).

É um grave equívoco. Quando se aplica de forma simplista a CBO, aumenta-se ilegal e artificialmente a cota de aprendizes, com desastrosas repercussões sociais e econômicas.

7. O Decreto 11.061/22, ao alterar o artigo 52 do Decreto 9.579 de 2018, enfrentou novamente esse tema com critérios mais objetivos para o manuseio da CBO, mas não resolveu o impasse. Eis a nova redação:

“Art. 52.  Para a definição das funções que demandem formação profissional, será considerada a Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Previdência.

§ 1º Ficam excluídas da definição de que trata o caput:

I – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de nível superior, exceto as funções que demandem habilitação profissional de tecnólogo; ou

II –  as funções que estejam caracterizadas como cargos de direção, de gerência ou de confiança, nos termos do disposto no inciso II do caput e no parágrafo único do art. 62 e no § 2º do art. 224 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.

§ 2º Deverão ser incluídas na base de cálculo:

I – as funções que demandem formação profissional, independentemente de serem proibidas para menores de dezoito anos de idade;

II – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de técnico de nível médio; e

III – as funções que demandem, para o seu exercício, habilitação profissional de tecnólogo.”

A referência à “formação profissional” como indicativo para a CBO, mesmo constando das normas regulamentares anteriores, não impedia desvios.

Agora há novo detalhamento nos acréscimos dos incisos II e III do artigo 52, § 2º, mas no caput e no inciso I a redação é muito aberta.

Para afastar dúvidas melhor seria, no caput do artigo 52, a mesma redação do artigo 428 da CLT, ou seja, “formação técnico-profissional metódica”.

A rigor, toda e qualquer profissão, simples que seja, exige alguma formação.

Mas o contrato de aprendizagem está atrelado à “formação técnico-profissional metódica”. Isso é que deveria prever o decreto e, mais especificamente, os exemplos concretos da CBO, privilegiando a interpretação teleológica.

Resta saber se a CBO corrigirá as inconsistências que carrega há muitos anos.

Convidamos o leitor a um desafio: encontrar na CBO atividade incompatível com a aprendizagem que não esteja prevista no artigo 52, § 1º, acima citado: são raríssimas. Não vale, é claro, a referência à profissão mais antiga do mundo7.

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui. 11.05.2022.

4 Em reportagem de 17.06.2021, a CNN destaca estudo elaborado pelo IMD World Competitiveness Center envolvendo 64 países indicando que a “educação brasileira está em último lugar em ranking de competitividade”. Segundo esse estudo, as perspectivas são ainda piores: “A perspectiva é que os próximos indicadores apontem para um agravamento na qualidade da educação brasileira, devido às implicações da pandemia de Covid-19 na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades dos estudantes. Para se ter uma ideia, o período de fechamento das escolas no Brasil é maior do que nos países da OCDE, em média. Até o fim de junho deste ano, a média da OCDE era de 14 semanas, enquanto que no Brasil as escolas permaneciam fechadas há 16 semanas. O baixo desempenho do Brasil na educação implica ainda em uma baixa qualificação dos profissionais no mercado de trabalho. No estudo do IMD World Competitiveness Center, o país é o 63º colocado em relação à relevância da educação primária e secundária para as exigências do sistema produtivo.”

5 Disponível aqui. Essa contradição se repete em muitos outros exemplos (na mesma família, veja-se o caso dos estivadores – 7832-20). Na família 6220 diz a CBO que “o exercício das ocupações requer ensino fundamental (jardineiro e trabalhador na produção de mudas e sementes) e até a quarta série do mesmo nível (caseiro e trabalhador volante da agricultura).a qualificação é obtida na prática, exceto o trabalhador na produção de mudas e sementes, que demanda curso básico profissionalizante de até duzentas horas/aula. o pleno desempenho das atividades ocorre após alguns meses de prática (caseiro e trabalhador volante) e de um a dois anos para os demais. A(s)ocupação(ões)elencada(s) nesta família ocupacional demanda formação profissional para efeitos do (…).”

6 Capítulo “Contratos de aprendizagem. Critérios para aferição da cota em face da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO)”, da obra coletiva “Novos dilemas do trabalho, do emprego e do processo do trabalho: homenagem ao professor Ari Possidonio Beltran”, coordenada por Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho e Carlos Francisco Berardo. S. Paulo: LTr, 2012. “Aspectos jurídicos da aprendizagem: problemas e soluções”. Revista de direito do trabalho. v. 40. n. 157. S. Paulo.  maio/jun. 2014. p. 47-62.  “Contratos de aprendizagem e a polêmica CBO”. Revista Justiça e Cidadania. n. 138. Rio de Janeiro. Fevereiro de 2012. p. 36-39.

7 Disponível aqui.

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