Por Rafael E. Pugliese Ribeiro
Publicado originalmente em conjur.com.br
O ministro Gilmar Mendes, por decisão monocrática no ARE 1160361/SP, não concluiu que o devedor solidário, integrante do mesmo grupo econômico, não pode ser incluído na fase de cumprimento de sentença. A decisão sugere ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) uma “melhor reflexão sobre a matéria, as motivações e os efeitos do cancelamento” da Súmula 205, à luz do que consta do artigo 513, §5º, do CPC [1]. Mas ao afirmar que o TST teria “desconsiderado” o teor normativo do citado artigo 513, §5º, incidiu-se em claro engano.
A base do engano está na incompreensão sobre como se deve interpretar uma norma de processo quando confrontada com uma norma de Direito material. A composição do polo processual é questão de processo, mas a solidariedade passiva é questão de Direito material.
A solidariedade passiva é a existência de dois ou mais devedores (CC, artigo 264 [2]), cada qual vinculado à obrigação de quitar a dívida por inteiro, ou seja, in solidum, daí o nome de solidária. A solidariedade deve ser interpretada em consonância com o fim visado. Como a solidariedade passiva representa cláusula de cautela e proteção para reforçar a satisfação da obrigação, não pode ser interpretada para se afastar ao fim a que se presta. O que existe para reforçar a segurança da obrigação não deve encontrar fórmula interpretativa para afrouxá-la. A execução se processa para a tutela do interesse do credor (CPC, artigo 797), não do devedor. Nelson Nery Jr, em comentários ao CPC, adverte que “não se pode, por intermédio do processo, aniquilar o instituto da solidariedade, criado não em benefício do devedor solidário, para resolver as suas pretensões para com os demais codevedores solidários” (RT, 17ª ed., p. 478, versão eletrônica).
Tanto não se exige que na solidariedade ativa todos os credores postulem em conjunto o crédito solidário, quanto não se exige que todos os devedores solidários precisem ser demandados por suas cotas, já que a solidariedade justifica a cobrança integral de um devedor, independentemente da presença dos demais [3], aos quais sempre será oponível à conta do caráter in solidum da obrigação. E, ainda assim, se qualquer dos obrigados pagar a dívida dentro ou fora da relação processual, poderá reivindicar dos demais o ressarcimento na proporção do que lhes toca sob a eventual relação que porventura tenham convencionado entre si. O negócio jurídico convencionado privadamente entre os devedores não transmuda a solidariedade frente ao credor.
A solidariedade passiva pode ser analisada sob a ótica interna ou externa da relação jurídica a que se liga; sob o aspecto externo, ela existe em face de vários devedores, porém como se todos fossem apenas um. De tal modo que, sendo o cumprimento obrigacional oponível a apenas um obrigado, já se está opondo a todos (CC, artigo 275), e, mesmo quando a obrigação for demandada apenas de um deles, a tal não significará renúncia à solidariedade, que se conserva por inteiro (CC, artigo 275, §único [4]). Eis aí a segurança do Direito material.
Já sob a ótica interna da solidariedade passiva trabalhista derivada de grupo econômico deve-se considerar que a sua existência não decorre de vontade contratual. Trata-se de solidariedade que decorre de expressa disposição legal (Consolidação das Leis do Trabalho ou CLT, artigo 2º, §2º [5]; CLT, artigo 10 [6]; CC, artigo 265 [7]), pré-constituída ao contrato de trabalho, que existe pela simples condição de existir o grupo econômico, não demandando processo de conhecimento, nem de formação judicial da base obrigacional. É cláusula de garantia pré-pronta já resolvida pelos seus próprios elementos formadores ligados à existência do grupo econômico, compreendendo realidade muito diferente relacionada à condição de “coobrigados” sob as mais diversas realidades que o Direito material edifica a essa condição. Um devedor solidário assim constituído por fonte legal é muito mais do que simplesmente um coobrigado constituído por regra de contrato privado, para que se possa dar a um e outro o mesmo tratamento no diminuto espaço do artigo 513, §5º, do CPC.
Não existem modalidades distintas nas obrigações solidárias trabalhistas derivadas de grupo econômico que pudessem, por exemplo, definir que a solidariedade para um obrigado dependeria de culpa contratual e que para o outro obrigado incidiria a culpa extracontratual. É, simplesmente, unidade de obrigação com multiplicidade de sujeitos obrigados.
E tanto não se exige que a ação judicial dependa, necessariamente, de o ajuizamento ter se aparelhado em face de todos os devedores solidários, que o artigo 130, III, do CPC [8], simplesmente facultou o chamamento dos demais solidários ao processo por escolha do devedor demandado, em vez de vincular pressuposto para a aceitação da ação como imperativo de conduta ao autor. Isso está de acordo com o disposto no artigo 275, §único, do CC, que garante não haver renúncia à solidariedade pelo não ajuizamento da ação em face de todos os solidários.
Logo, a leitura do artigo 513, §5º, do CPC — que exigiria a presença do coobrigado (não se falou de solidário) desde a fase de conhecimento — frente ao artigo 275, §único, do CC — que garante não haver renúncia à solidariedade pelo ajuizamento da ação em face de apenas um devedor —, não poderia conduzir à conclusão de desarmonia do sistema normativo, em que a norma de processo (CPC, artigo 513, §5º) estaria invalidando a norma de Direito material (CLT, artigo 2º, §2º).
Seria escusado dizer, mas com relação ao corresponsável, igualmente incluído no artigo 513, §5º, do CPC, o cenário é ainda mais distante. O sujeito de uma obrigação se define como sujeito obrigado; o sujeito responsável por uma reparação nem sempre estará na raiz da formação obrigacional. O empregador que comete um ato ilícito é um sujeito obrigado à reparação (CC, artigo 927), enquanto que o ato ilícito cometido pelo empregado irá gerar simplesmente a responsabilidade do empregador (CC, artigo 932, III). São ideias que não se confundem. Portanto, o universo de coobrigados e corresponsáveis monta realidades muito variadas do que já se adensa no conceito de solidariedade, sobretudo a que decorre da lei substantiva, e não de contrato.
Será sempre útil que todos nós — e não somente o Tribunal Superior do Trabalho — possamos ter o interesse em revisitar conceitos importantes, ainda que as conclusões não desvendem nada de novo.
[1] “§5º. O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento”.
[2] “Artigo 264 – Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”.
[3] “Artigo 275 – O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto”.
[4] “Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores”.
[5] “2º. Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego”.
[6] “Artigo 10 – Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados”.
[7] “Artigo 265 – A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
[8] “Artigo 130 – É admissível o chamamento ao processo, requerido pelo réu:
III – dos demais devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum”.
Rafael E. Pugliese Ribeiro é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região