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Direito à felicidade

Duas décadas depois de se aposentar, o fiscal da Receita Antonio Carreira Madeira foi surpreendido, aos 78 anos, com o corte de um adicional de 20% de seu salário-base. O Estado do Amazonas, onde ele trabalhava, alegou que o pagamento contrariava a Constituição de 1988. “Foi um baque muito grande”, lembra a filha, a advogada Auta Gagliardi Madeira. “A renda caiu significativamente.” Antonio recorreu à Justiça, ao lado de diversos colegas que viram a aposentadoria minguar. Durante anos, já com a idade avançada, eles aguardaram por um desfecho.

Ao decidir o caso em 2002, o Supremo Tribunal Federal (STF) usou um fundamento inusitado para determinar ao Estado que voltasse a pagar o adicional: o direito à busca da felicidade. Desde então, o termo “felicidade”, que não está em nenhum dos 250 artigos da Constituição de 1988, passou a ser cada vez mais mencionado por ministros de tribunais superiores para embasar decisões.

“Latentemente, subjacentemente em tudo o que analiso, eu verifico a busca da felicidade”, afirmou ao Valor o ministro Carlos Ayres Britto, próximo presidente do STF e relator de grandes processos recentes em que a ideia foi invocada – como os que discutiram a possibilidade de pesquisas com células-tronco e a união estável entre casais homossexuais.

Britto diz acreditar que, no STF, “cada vez mais se avultará a compreensão de que existe essa busca de felicidade” – tanto individual como coletiva. “Dentro de mim, há uma individualidade, mas também uma universalidade”, definiu o ministro. “Só que sem o eclipse do ego ninguém se ilumina”, concluiu, referindo-se à busca do bem-estar da sociedade. Para ele, apesar de não estar expressamente mencionada, a felicidade é um conceito implícito na Constituição. “Ela está em todo o artigo 5º”, disse, em menção ao capítulo que trata dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem proferido decisões paradigmáticas tomando a felicidade como fundamento. “Busco aplicar, nos processos que me são distribuídos, não apenas o resguardo daqueles direitos fundamentais que se impõem pela sua obviedade, mas também alguns outros que, embora implícitos, são assegurados tanto por princípios gerais do direito quanto pela dignidade da pessoa humana”, relata a ministra do STJ Nancy Andrighi. Para ela o “Estado-juiz” tem participação indireta na construção da felicidade individual. “Apenas propicia as ferramentas básicas para essa construção.”

A felicidade já foi citada em pelo menos sete casos recentes no STF e outros quatro no STJ, segundo pesquisa do advogado Saul Tourinho Leal, professor de direito constitucional em Brasília. Apesar da difícil definição do termo, desde as origens mais remotas ele se repete como ideal da vida em sociedade, diz o advogado. A busca da felicidade nos tribunais é reflexo de uma visão pela qual a lei, para além da letra fria, deve ser interpretada conforme princípios e valores éticos, que concretizem a ideia de Justiça.

Leal partiu de uma pergunta pragmática: “O STF pode servir para a maximização das sensações de bem-estar na sociedade?” E concluiu que, embora a missão da Corte não seja a de aumentar o nível de felicidade no país, e sim zelar pelos direitos previstos na Constituição, “é inegável que suas decisões impactam o sentimento das pessoas”. Afinal, páginas e mais páginas de argumentação jurídica nos processos escondem verdadeiros dramas humanos.

Como no caso de Antonio Madeira, beneficiado pela decisão do Supremo que determinou ao Estado do Amazonas que voltasse a pagar o adicional de 20% aos aposentados. Ao ganhar a causa, já com 81 anos, ele exclamou: “Finalmente se fez justiça”. A memória do caso emociona a filha Auta, que advogou no processo. Ela lamenta ter perdido o pai um ano depois de vencer a disputa, mas conforta-se ao lembrar como ele ficou contente ao receber a notícia da vitória, que acabou servindo de modelo para vários julgamentos.

“A primeira coisa que ele fez foi comprar um piano para minha mãe, que tocou até o fim da vida.” Desde aquele processo, a advogada passou a usar o direito à felicidade como argumento em diversas petições. O relator do caso, o então ministro Carlos Velloso, ressaltou em seu voto que “uma das razões mais relevantes” para a existência das normas é “o direito do homem de buscar a felicidade”.

Em alguns casos, como o de Antonio, esse efeito é principalmente individual, afeta apenas a parte envolvida no processo. Mas decisões que podem influenciar o estado psicológico de cidadãos em massa são tomadas em grandes julgamentos – como o que autorizou, em maio de 2008, a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias, consideradas fundamentais para a busca de tratamento de pessoas com deficiências físicas.

Para Ayres Britto, relator do processo, houve um inegável benefício coletivo com a decisão. “As pesquisas com células-tronco objetivam o enfrentamento de patologias e traumatismos que severamente limitam, atormentam, infelicitam, desesperam e não raras vezes degradam a vida de expressivo contingente populacional”, afirmou em seu voto.

O ministro Celso de Mello seguiu linha semelhante, dizendo que aquela pesquisa “significa a celebração solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade e do viver com dignidade.” Proclamado o resultado, um cadeirante que assistia ao julgamento no plenário do STF levantou os braços, fechou os olhos e chorou.

Uma das áreas em que o Supremo mais tem invocado a busca da felicidade envolve justamente a saúde. Um mês antes do julgamento das pesquisas com células-tronco, Celso de Mello mencionou esse direito ao defender o custeio de uma cirurgia de um paciente que poderia morrer a qualquer momento. Depois de ficar tetraplégico num assalto em uma avenida em Pernambuco, um estudante de 25 anos entrou na Justiça pedindo ao governo do Estado que pagasse os custos da implantação de um marcapasso, para que pudesse respirar sem aparelhos. A cirurgia era delicada e custaria US$ 150 mil.

O estudante ganhou a causa no Tribunal de Justiça de Pernambuco, mas a então presidente do STF, ministra Ellen Gracie, suspendeu a liberação do dinheiro. Ela manifestou “deferência aos familiares” e disse reconhecer “o sofrimento e a dura realidade vivida pelo agravante”, mas entendeu que o pedido poderia gerar um precedente econômico grave, abrindo espaço para inúmeros pedidos de operações que poderiam comprometer as finanças de governos estaduais.

A 15 dias da data-limite definida pelos médicos para a operação, um novo recurso do estudante foi levado a julgamento. Apenas cinco ministros do STF estavam presentes. Novamente, Ellen Gracie negou o pedido. Mas, no voto que definiu o resultado, Celso de Mello determinou o pagamento da cirurgia, entendendo que houve omissão do Estado em garantir a segurança pública.

“A realidade da vida tão pulsante nesse caso impõe que se dê provimento a esse recurso e se reconheça a essa pessoa o direito de buscar autonomia existencial, desvinculando-se de um respirador artificial que a mantém ligada a um leito hospitalar”, afirmou o ministro. A decisão foi um suspiro de esperança para a família. Mas a cirurgia não foi capaz de salvar a vida do estudante.

A “autonomia existencial” mencionada no voto de Celso de Mello toca numa ideia central do conceito de busca à felicidade – que não significa, como à primeira vista poderia parecer, uma mera oposição ao estado psicológico de tristeza. Segundo seus proponentes, o termo remete a um ideal de sociedade que garanta aos cidadãos as condições de ser o que desejam e os meios para buscar seu próprio contentamento.

Críticos apontam, porém, que ao ser usada como argumento jurídico, a “busca da felicidade” poderia levar a decisões assistencialistas, inconsistentes e até contrárias ao que diz a lei. Esse temor foi manifestado num processo em que o Supremo concedeu ao companheiro de um funcionário público falecido o direito de receber sua pensão. A filha do servidor, que demandava o benefício para si, contestou a decisão. “A tese do direito à felicidade não pode se sobrepor à lei vigente, na medida em que cada um tem uma visão do que é esse subjetivo estado de euforia que está na metafísica”, argumentou em seu recurso, que no entanto foi negado pela corte.

“Temos um conceito coletivo de justiça, mas de felicidade é difícil”, afirma o jurista Ives Gandra Martins, fazendo coro aos que criticam um uso amplo do termo. “O direito à felicidade é invocado como se estivesse acima, sem se perceber que varia de pessoa para pessoa.” Para ele, trata-se de um conceito amplo e subjetivo demais para ser tomado como norma de direito positivo ou fundamento jurídico de decisões, pois tal tarefa demandaria primeiro uma definição – o que esbarraria em todo tipo de dificuldade. “Qual a felicidade de um serial er? É matar”, diz Martins. “E a de um cidadão viciado em sexo?” Como todo direito corresponde a uma garantia, continua o jurista, a busca da felicidade teria que ser assegurada a todos os cidadãos. Mas como fazê-lo na prática, tendo em vista tratar-se de um anseio individual? “O Estado não teria como garantir o direito à felicidade de 195 milhões de brasileiros de acordo com seu próprio conceito de felicidade”, conclui o jurista. Como se vê, o uso crescente do termo não vem desacompanhado de debates.

Se no Brasil a aproximação com o direito é recente, a felicidade está na certidão de nascimento dos Estados Unidos, a Declaração de Independência de 1776, permeada de valores como liberdade e autonomia individual. “Todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais se contam a vida, a liberdade e a busca da felicidade”, diz a declaração em seu segundo parágrafo. A menção à felicidade foi proposta por ninguém menos que Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos e um dos mais influentes “pai fundadores” daquele país.

A Suprema Corte americana já julgou 90 casos mencionando o direito à felicidade, segundo a pesquisa de Leal. Hoje, mais de dois terços das constituições dos estados americanos invocam a busca da felicidade. No século XX, depois da Segunda Guerra Mundial, ela também surgiu nas Constituições do Japão, em 1946, e da Coreia do Sul, em 1948. Mais recentemente, o conceito chegou à Organização das Nações Unidas (ONU) que, no ano passado, indicou que os governos devem elaborar políticas públicas visando à felicidade geral.

Em várias partes do mundo, estudiosos têm se dedicado a mensurar a felicidade das sociedades. A pesquisa movimenta disciplinas diversas como economia, ciências políticas, psicologia, sociologia e direito – nos EUA existe um campo de investigação chamado “law and happiness” (direito e felicidade). Segundo os autores dessas investigações, elas poderiam servir como base de formulação de políticas que aumentem a felicidade geral das pessoas.

Na Suíça, por exemplo, estudos concluíram que cidadãos de cantões que adotam instrumentos da democracia direta, como plebiscito e referendo, são mais felizes que os moradores de outros onde essas medidas não são usadas. Pesquisas feitas nos Estados Unidos e na Europa também concluíram que o respeito a grupos minoritários – definidos por raça, religião, sexo ou orientação sexual – está associado a e níveis mais elevados de felicidade, não somente dos grupos diretamente afetados, mas de toda a população.

Remetendo as conclusões para o Judiciário brasileiro, Saul Tourinho Leal interpreta que, quando esse tipo de prática decorrer da atuação do STF, a Corte estará servindo de instrumento para maximizar as sensações de bem-estar da sociedade.

Se as premissas estiverem corretas, a decisão em que o Supremo reconheceu o direito de pessoas do mesmo sexo manterem uma união estável e familiar terá contribuído para um estado coletivo de maior felicidade. Em julho do ano passado, Celso de Mello recebeu um recurso de um homem que queria pensão pela morte de seu companheiro. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia negado o pedido alegando que a Constituição reconhece apenas a união heterossexual como entidade familiar. Ao modificar a decisão do TJ, o ministro considerou o direito à busca da felicidade como um “verdadeiro postulado constitucional”.

O pesquisador Mário Villarruel, que vive há dois anos e meio em São Paulo com seu parceiro, sentiu os efeitos do julgamento. “Foi uma extensão de direitos dos quais a gente era tolhido até 5 de maio de 2011″, diz. “Um documento aparentemente tão ínfimo se desdobra em uma série de fatores muito positivos para a vida de parceiros homoparentais”, acrescenta, dando como exemplo a facilidade para assinar contratos, comprar bens e alugar imóveis junto com o parceiro.

Na avaliação do jurista Luís Roberto Barroso, que fez uma defesa eloquente no STF no caso da união estável homoafetiva, o direito à busca da felicidade não tem uma dimensão normativa direta. Ele não é um direito fundamental, como os direitos à integridade física e à vida. “É um valor interpretativo que permite ao juiz escolher a alternativa que produza mais felicidade”, definiu Barroso. “A ideia de busca da felicidade, de bem-estar, deve estar sempre presente em qualquer atividade que lide com a pessoa humana. Quando vejo um ato de extrema Justiça, isso me faz um bem.”
Fora dos tribunais, um dos casos mais lembrados quando se pensa em direito à felicidade é o Butão, país que substituiu o PIB pelo Índice Nacional de Felicidade Bruta. Ao medir o desenvolvimento nacional, os butaneses levam em consideração o quanto as pessoas são felizes, fazendo uma relação entre objetivos definidos por elas e o que de fato alcançam. Também verificam indicadores de realizações do governo, bem estar da população, proteção da cultura e desenvolvimento sócio-econômico estável e igualitário.

No Brasil, o Movimento Mais Feliz defende que as políticas públicas tenham como meta a felicidade. O senador Cristovam Buarque (PDT-DF) encampou a ideia e apresentou uma emenda para incluir a expressão “busca da felicidade” no artigo 6º da Constituição, que trata dos direitos sociais – como educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer e segurança. Pela proposta, antes de listar esses direitos, o artigo ressaltaria que eles são “essenciais à busca da felicidade”. Buarque reconhece que a inclusão do termo teria pouca serventia nas discussões jurídicas. Mas, para ele, o status constitucional alçaria a felicidade como valor a ser perseguido. “Estou procurando novos artigos onde a busca da felicidade também possa ser inserida na Constituição”, disse o senador.

Fonte: Valor Econômico

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